quarta-feira, 3 de julho de 2013

A teologia prática dos jesuítas




A teologia prática dos jesuítas

A grande obra missionária que os jesuítas ergueram na América - e também no oriente e África - esteve intimamente vinculada a vários conceitos teológicos inovadores que seus luminares desenvolveram. Antes disso, o terreno fora preparado pela publicação da bula Inter coetera Divinae em 1493 pelo papa Alexandre VI, que dividiu as terras recém descobertas do ocidente entre os reinos da Espanha e Portugal e resultou na prática com a consolidação do direito do Padroado, que concedia aos soberanos português e espanhol uma jurisdição não apenas política mas também eclesiástica sobre o Novo Mundo. Sobre esta base dupla se estruturou toda a Conquista, requerendo para ser implementada nesse molde tanto exércitos como missionários.28 29 Quando os estatutos da Companhia de Jesus foram definidos, em 1540, ficaram estabelecidas suas vocações principais, entre elas a de obediência total ao papa, e a de se prontificarem a ir, sem questionamentos, aonde ele indicase para a divulgação do Evangelho, o chamado "quarto voto". Isso configurava um modelo de evangelização à imitação do apostolado imposto por Cristo para seus discípulos - da mesma forma que Cristo enviara seus apóstolos para o mundo, o papa, como vigário de Cristo, enviaria os jesuítas -, dava um tom nitidamente cristológico à sua vocação, buscando em toda parte sinais que prefigurassem o Segundo Advento, e fazia uma ligação com a teologia sincrética de São Paulo, que em sua pregação para os gregos identificara seu deus ignoto com o deus cristão. A partir dessa ligação o pensamento jesuíta se inclinou para o conceito da revelação natural, para a busca de um deus acessível a todos, um deus que vivia em todos e a todos animava, o que possibilitou que os jesuítas fossem simpáticos e tolerantes com credos não-cristãos e encontrassem inspiração nos textos da filosofia clássica, a qual por sua vez já inspirara os primeiros Doutores da Igreja como prenúncios da doutrina de Cristo.29 Dessa forma, sua teologia inicial foi um produto típico do Humanismo renascentista, fazendo uma mediação entre a tradição da Antiguidade clássica pagã e o Cristianismo.
Um jesuíta das missões do oriente, vestido com costume local, ilustrando o conceito da acomodação
A liberalidade do seu pensamento foi cristalizada no conceito da acomodação (accomodatio), que interpretava a doutrina de que asalvação só podia acontecer dentro da Igreja (extra Ecclesiam nulla salus) nos termos da possibilidade de remissão do pecado originalmediante apenas a lei natural. Uma vez que Deus criara toda a ordem do universo, estava em todas as coisas e dava a todas uma espécie de iluminação interna, presente até naqueles homens que jamais haviam conhecido o Evangelho mas que por virtude dessa luz estavam imbuídos de uma "fé implícita". Era, pois, todo o mundo manifesto a grande Igreja de Deus, e assim a acomodação permitiu que os jesuítas encontrassem na fé alheia imagens comuns com o Catolicismo. Porém, essas proposições divergiam do que resolvera oConcílio de Trento, que entendera impossível a justificação sem fé declarada e sem batismo. Ao mesmo tempo, a acomodação era tomada também em seu senso estrito, como uma capacidade de adaptação às circunstâncias e às necessidades locais da evangelização, autorizando os jesuítas a se moldarem externamente a qualquer forma de culto estranho, desde que no seu interior preservassem a "verdadeira fé", a fim de que o contato intercultural fosse satisfatório e frutificasse dentro do espírito da diplomacia, do respeito e da etiqueta. Empregando essa forma de apostolado indireto, se chocavam contra as Ordens missionárias que preferiam modos explícitos de pregação, ensinando nas ruas e exibindo ostensivamente os símbolos cristãos como o crucifixo.30
Essas ideias pouco ortodoxas foram, junto com as acusações de imperialismo dissimulado, interferência indevida na política,ultramontanismo e enriquecimento suspeito, as causas principais para que começassem a receber críticas de vários pensadores e clérigos importantes, inclusive gerando dissidências internas. Os críticos deploravam o efeito que a metodologia jesuítica estava produzindo na América, tais como manifestações grosseiras de devoção entre os índios num culto excessivo às imagens dos santos, que se aproximava da idolatria, e um ardor missionário demasiado afeito à glorificação do martírio, e buscavam regularizar, moderar e "esfriar" os movimentos de renovação da fé cristã. Ao mesmo tempo, no oriente, trabalhando com culturas de grande antiguidade e sofisticação como a japonesa e a chinesa, os jesuítas pareciam estar se inclinando a uma valorização imprópria da razão, da ciência e da educação profana em detrimento da fé, e estavam introduzindo práticas estranhas no próprio ritual da missa. Ademais, mantinham opiniões controversas sobre o livre-arbítrio e a predestinação e atraíram a inveja de outras Ordens pela influência conquistada sobre a política eclesiástica do Estado, por serem até antes da ascensão de Carlos III os confessores prediletos dos reis da Espanha, e também durante algum tempo dos reis da França. Enfim, a afluência à Europa de uma profusão de relatos maravilhosos e excitantes dos jesuítas sobre sua experiência com um vasto número de culturas exóticas, algumas delas com filosofias próprias que podiam competir com a tradição clássica em termos de sutileza e profundidade, começou a abalar, ainda que involuntariamente, a noção de superioridade da civilização cristã, instilando nela o germe do relativismo.31 32 33 Segundo Elisabetta Corsi,
"Fiéis ao mandato de Inácio de 'achar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus', os jesuítas missioneiros ... trataram de harmonizar o ideal cristão com as diversas manifestações culturais e religiosas dos povos com que interagiram. Sua atitude, amiúde audaz e liberal, mas não isenta de eurocentrismo e de uma certeza intrínseca na unidade e superioridade do Cristianismo, gerou intensos debates na Europa durante muito tempo. Os testemunhos escritos desses debates quase sempre refletem posturas extremadas: passam da glorificação à demonização, e intimam para que adotemos um partido, seja daqueles que os vêm como colonizadores sem escrúpulos como dos que os percebem como místicos sobrenaturais. Quando essas tensões se tornaram intoleráveis a Companhia foi suprimida em vários países, culminando com sua dissolução definitiva em 1773".

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