sexta-feira, 8 de março de 2013

Provas Metafísicas da Existência de Deus – Curso de Filosofia de Jolivet


Provas Metafísicas da Existência de Deus – Curso de Filosofia de Jolivet



Curso de Filosofia – Régis Jolivet
Capítulo Segundo
PROVAS   METAFÍSICAS   DA   EXISTÊNCIA   DE   DEUS
201        Podem-se distinguir dois grupos de provas da existência de Deus: o das provas metafísicas e o das provas morais, conforme estas provas partem da realidade objetiva do universo, ou da realidade moral. Na realidade, toda prova de Deus é metafísica, uma vez que a existência de Deus não é, propriamente, objeto de apreensão intuitiva e não pode ser demonstrada a não ser com aajuda de princípios metafísicos. É possível, contudo, e ressalvada esta observação, conservar a divisão em provas metafísicas e provas morais.
ART.    I.    OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE AS PROVAS METAFÍSICAS
1. A experiência, nas provas metafísicas. — Estas provas também são chamadas muitas vezes provas físicas, por assinalar o fato de se apoiarem na experiência objetiva. Mas toda prova da existência de Deus, seja metafísica ou moral, deve necessariamente partir dos dados de experiência, quer dizer, deve ter sua origem ou seu ponto de apoio nos seres e fatos concretos que a experiência nos revela, para elevar-se daí a um Ser real, sem o qual estes seres e estes fatos e todo o universo permaneceriam inexplicados e inexplicáveis.
202      2. Visão geral das provas metafísicas. — Antes de expor os diversos argumentos, é útil tomá-los em conjunto, de forma sintética, a fim de tornar mais claramente acessível à inteligência o que constitui o eixo comum de uns e outros.
a) O fato do condicionamento universal. Tudo o que vemos em torno de nós, e tudo o que a ciência, cada vez mais, nos ensina, aparece-nos como um encadeamento de seres ou fenômenos que se sucedem e se imiscuem uns nos outros e assim formam séries que têm os seus anéis sòlidamente articulados. É a isto que podemos chamar fato do condicionamento universal, pelo qual todos os seres e todos os fenômenos do universo encontram sua condição, quer dizer, sua causa ou razão de ser, num outro ser ou outro fenômeno.
b) A causa primeira incondicionada. O princípio que nos orienta neste ponto é o de que, de condicionado a condicionante, é preciso necessariamente chegar a um princípio ou a uma causa absolutamente primeira, absolutamente incondicionada e, conseqüentemente, colocada fora da série causai. De nada adiantaria, com efeito,prosseguir o infinito, uma vez que a série causai, mesmo concebida como infinita, seria ainda condicionada no conjunto, quer dizer, composta unicamente de intermediários que transmitissem simplesmente a causalidade. Na ordem causai, é o primeiro termo incondicionado que produz tudo, pois o resto não tem por função senão transmitir o movimento ou o ser. (Um canal, por mais longo que seja, não é a explicação da água que nele circula; apenas a fonte explica a corrente. Da mesma forma, não se explica o movimento das bolas de bilhar, multiplicando o número das bolas, mas unicamente recorrendo, qualquer que seja o número de bolas, à mão, que é a causa primeira do movimento que as bolas transmitem umas às outras.)
203 c) A causa universal absolutamente primeira. Nossa investigação só pode terminar numa causa única e por isto mesmo universal, pois a causa absolutamente primeira não pode ser senão única. Se ela fosse múltipla, serianecessário supor que as causas absolutamente primeiras são independentes umas das outras (senão, elas não seriamabsolutamente primeiras). Ora, esta suposição é incompatível com a unidade e a ordem que reina no universo, e inconciliável com as exigências da razão, para a qual o inteligível, o ser e o uno são convertíveis (192). Se assim não fosse, seria necessário admitir que a lei absoluta das coisas não coincide com a de nosso pensamento e que, apesar do absurdo ser inconcebível, pode contudo constituir o cerne das coisas. Ora, nisto existe uma incompatibilidade radical, uma vez que, como já vimos  na Crítica  do conhecimento   (177), os princípios da razão não são nada mais do que as próprias leis do ser.
É necessário, portanto, concluir que só existe uma Causa absolutamente primeira e que esta Causa, que, pela própria definição (sendo absolutamente primeira) não depende de nenhuma outra e domina todas as séries causais, deve ser um Ser necessário, quer dizer, de tal ordem que não possa não ser, exista por sua própria essência e tenha em si a razão total de sua existência.
204      3. Objeção kantiana. — Kant levantou contra o valor das provas da existência de Deus uma objeção geral que devemos examinar aqui. Todas estas provas, diz ele, apóiam-se no princípio da causalidade, pelo fato de que procuram mostrar que Deus é causa do universo. Ora, o princípio da causalidade não tem valor a não ser na ordem da experiência sensível. As provas de Deus são, portanto, ineficazes.
A esta objeção devemos opor o seguinte: em primeiro lugar, que o princípio da causalidade, como nós o empregamos aqui, não nos serve mais do que para provar que o universo exige uma causa, e isto em virtude mesmo do que apreendemos no universo, e de forma alguma para definir o que é ou deve ser em si esta causa, — depois, e de acordo com o que estabelecemos na Crítica do conhecimento (177), que o princípio de causalidade não é uma-forma subjetiva, quer dizer, a priori e arbitrária, de nossa razão, mas uma evidência objetiva, apreendida no próprio ser dado à experiência, e por conseguinte válida proporcionalmente para a universalidade do ser. Segue-se que, ao contrário do que afirma. Kant, o uso transcendente do princípio de causalidade é legítimo-e rigorosamente válido.
ART. II.    AS CINCO  VIAS
205    Uma vez que se aprendeu bem o esquema geral das provas, físicas (ou metafísicas) da existência de Deus, é fácil compreender os cinco argumentos (ou as cinco vias que conduzem a Deus) propostos por Santo Tomás. Estes argumentos partem das diferentes ordens de condicionamento ou de encadeamento que podemos observar no universo, e cada um nos conduz ao mesmo Princípio absortamente primeiro, que é Deus.


§ 1.   Prova pelo movimento
Santo Tomás considera esta a prova mais manifesta de todas. Para bem compreendê-la, é importante ter bem presentes ao espírito ao mesmo tempo a noção de movimento e o princípio geral em que se baseia a prova.
1.    O princípio do argumento.
a)         A noção de movimento. O termo movimento não designa apenas o deslocamento de um lugar para outro, mas, em geral, toda passagem da potência ao ato, isto é, de uma modalidade de ser a uma outra. Como vimos em Cosmologia (73), o que há de essencial no movimento é propriamente a passagem enquanto passagem, o que faz do movimento uma realidade que participa a um tempo do ato e da potência. O movimento é, então, o sinal e a forma do que se chama em geral o vir-a-ser.
b)         A inteligibilidade do vir-a-ser. Toda a questão estará então em descobrir o que torna inteligível (quer dizer, o que explica) o vir-a-ser. Para isto vai-se recorrer ao princípio, estabelecido na Ontologia (194), segundo o qual "tudo o que se move é movido por outro", quer dizer que nada passa da potência ao ato a não ser sob a ação de uma causa já em ato, o que significa, mais resumidamente, que nada pode ser causa de si mesmo.
2.         O argumento. — Em virtude do princípio precedente, Santo Tomás estabelece que o movimento exige um primeiro motor (o que não é mais do que uma aplicação do princípio geral da inteligibilidade do vir-a-ser). "Com efeito, diz ele, é evidente (e nossos sentidos o atestam) que, no mundo, certas coisas estão em movimento. Ora, tudo o que está em movimento é movido por um outro. É impossível que, sob o mesmo aspecto, e do mesmo modo. um ser seja a um tempo movente e movido, quer dizer que se mova a si mesmo e passe por si mesmo da potência ao ato. Logo, se uma coisa está em movimento, deve-se dizer que ela está movida por uma outra (81). E isto porque, se a coisa que move por sua vez se move, é necessário, por outro lado, que ela seja movida por uma outra, e esta por uma outra ainda. Ora, não se pode ir assim ao infinito,  porque não existiria  então  motor primeiro, e daí se seguiria que não existiriam tampouco outros motores, pois os motores intermediários não movem a não ser que sejam movidos pelo primeiro motor, como o bastão não se move a não ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a um motor primeiro que não seja movido por nenhum outro. E este primeiro motor é Deus."
3.    Objeção. — Certos filósofos julgaram poder fugir a esta conclusão admitindo uma série infinita e eterna de motores e móveis. Se o mundo e o movimento, pensam eles, são eternos, não há por que procurar um primeiro motor.
Mas Santo Tomás responde que esta objeção não poderia atingir o argumento, porque não o toma no seu verdadeiro sentido. Com efeito, o argumento manteria toda a sua força na hipótese da eternidade do mundo, uma vez que o que se considera não é a série de motores acidentalmente subordinados no tempo, mas a série de motoresatualmente e essencialmente subordinados: atualmente, a planta cresce, e seu crescimento depende do Sol; mas o Sol, de que depende? Seu movimento atual, de onde provém? Se o recebe de um outro astro, este astro, por sua vez, de onde recebe atualmente o seu movimento? É impossível prosseguir ao infinito, porque isto seria suprimir o princípio e a fonte do movimento, e, portanto, o próprio movimento. Ora, o movimento existe. Logo, existe um primeiro motor. E se o mundo fosse eterno, seu movimento exigiria eternamente um primeiro motor.
4.    Corolários. — Da noção de primeiro motor imóvel, quer dizer, de um ser imutável na perfeição que lhe pertence por sua própria essência, podem-se deduzir imediatamente os corolários seguintes:
a) O primeiro motor imóvel é infinitamente perfeito. Com efeito, toda mudança implica imperfeição, uma vez que mudar é adquirir o ser que não se tem. Se, pois, o primeiro motor é absolutamente imóvel é que ele possui toda a perfeição, quer dizer, a plenitude do ser.   Em outras palavras,  ele é Ato puro.
b) O primeiro motor imóvel é um ser espiritual, pois a matéria é corruptível, portanto essencialmente imperfeita. Sendo espiritual, o primeiro motor deve ser também inteligente e livre, pois inteligência e liberdade são propriedades essenciais dos seres espirituais.
c)         O primeiro motor imóvel é eterno, uma vez que é absolutamente imutável.
d)         O primeiro motor imóvel é onipotente, pois, sendo princípio do movimento universal, está presente por seu poder a tudo aquilo que move, quer dizer, a todo o universo.
§ 2.   Prova pela causalidade
206      1.    O argumento.
a)         Há uma Causa absolutamente primeira. Na prova pelo movimento, colocando-nos do ponto-de-vista dovir-a-ser fenomenal. Aqui, encaramos a causalidade propriamente dita. Tudo o que se produz, como dissemos, é produzido por outra coisa (senão, o que é produzido seria causa de si mesmo, quer dizer, anterior a si, o que é absurdo). Concluímos daí, por exclusão da regressão ao infinito, que há uma Causa absolutamente primeira, fonte de toda causalidade.
b)         Esta Causa primeira é transcendente, a todas as séries causais. Em outras palavras, ela não pode ser umelemento da série das causas. Com efeito, se ela não fosse mais do que o primeiro elemento da série causai, seria necessário explicar como este primeiro elemento teria começado a ser causa, quer dizer que, em virtude do princípio de que nada se produz a si mesmo, seria necessário recorrer a uma causa anterior a que se desejaria considerar como primeira, o que é contraditório. É preciso, então, necessariamente, que a Causa primeira transcenda (quer dizer, ultrapasse absolutamente e domine) todas as séries causais, que ela seja causa por si, incausada e incriada.
2. Objeção. — Tem-se pretendido muitas vezes opor a este argumento a hipótese de uma causalidade circular,quer dizer, de uma causalidade recíproca dos elementos do universo, em que a matéria se transformasse em energias diversas, para voltar em seguida a seu estado original e assim por diante, indefinidamente (hipótese defendida por  certos  filósofos   gregos, que  não tinham a noção de criação, e, entre os modernos, por ).
Ora, mesmo que se encontrasse um fundamento para esta hipótese, ela não alteraria em nada o alcance da prova pela causalidade : que a evolução seja circular ou linear, isto não se refere senão à transmissão, e não à fonte de causalidade. Ficaria por explicar a existência do Universo, concebido  como  um Todo.
§ 3.    Prova pela existência de seres contingentes
207 1. O argumento. — Esta nova prova parte do fato de que o mundo físico é composto de seres contingentes, quer dizar, de seres que são, mas poderiam não ser, pois estes seres, ou nós OS vimos nascer, ou então a ciência nos mostra que eles foram formados, ou ainda a sua composição exige, para explicá-los, uma causa de sua unidade.
Ora, os seres contingentes não possuem em si mesmos razão de sua existência. Com efeito, um ser que tivesse em si, quer dizer, na sua própria natureza, a razão de sua existência, existiria sempre e necessariamente. Os seres contingentes devem, portanto, ter, num outro, a razão de sua existência, e, este outro, se também é contingente, também tem a sua num outro. Mas não é possível prosseguir assim ao infinito: de ser em ser, devemos chegar, afinal, a um ser que tenha em si mesmo a razão de sua existência, quer dizer, a um ser necessário, que exista por si, e pelo qual todos os outros existam.
Este ser necessário, que existe por sua própria natureza, e que não pode não existir, é Deus.
2. Objeção panteísta. — Os panteístas admitem, efetivamente, este raciocínio, mas não a sua conclusão. Para eles,o ser necessário não seria um Deus pessoal, mas o próprio mundo, tomado no seu conjunto, e concebido por eles como um ser único e infinito.
Mas esta doutrina vai, evidentemente, contra a razão. Com efeito, o todo, que é a soma das partes, não pode ser de uma natureza diferente das partes. Ora, o mundo é composto de seres contingentes. Logo, ele também é contingente e, assim como cada uma das suas partes, não existe por si mesmo. Portanto, sua existência, para ser inteligível, postula a existência de um ser que existe por si e que é Deus.
§ 4.    Prova pelos  graus de perfeição dos seres
208      1.    O argumento.  — Parlamos do  aspecto de beleza   que as coisas manifestam diferentemente. Diremos: se a beleza se encontra em diversos seres segundo graus diversos, é necessário que ela seja produzida neles por uma causa única. É impossível que esta qualidade comum a seres múltiplos e diversos pertença a estes seres em razão de sua própria natureza, pois, do contrário, não se compreenderia por que a beleza se encontraria neles, ora em maior, ora em menor quantidade. Eles seriam esta beleza por sua própria essência, quer dizer, necessariamente a possuiriam perfeita, sem limite, nem restrição. O fato de que há diferentes graus de beleza obriga então a que os diversos seres em que descobrimos estes graus participem simplesmente de uma Beleza que existe fora e acima desta hierarquia de beleza, e que é a Beleza absoluta e infinita.
Este argumento se aplicaria validamente a todas as perfeições ou qualidades, que podem ser levadas ao absoluto: ser, unidade, verdade, bondade, inteligência e sabedoria. O primeiro Princípio deve, então, ser necessariamente Ser perfeito, Unidade absoluta, Verdade, Bondade, Beleza, Inteligência e Sabedoria infinitas.
2. Alcance do argumento. — Este argumento não exige, apenas, uma Beleza ideal, mas uma Beleza subsistente,nem, apenas, uma Verdade ou uma Bondade ideal, mas uma Verdade e uma Bondade subsistente (e assim por diante para as outras perfeições), quer dizer que ele conduz, como os argumentos precedentes, a um Ser que existe em si e por si, e que é, por essência, Verdade, Bondade, Beleza, Unidade etc, absolutas e infinitas.
É que este argumento, como os precedentes, também é investigação de uma razão de ser, a saber, investigação da razão ou da causa da semelhança ou hierarquia dos seres compostos. Sob esse aspecto, estabelece que os seres que possuem graus desiguais de perfeição não têm  em  si mesmos a razão última  desta perfeição, e que esta não pode explicar-se senão por um Ser que a possui absolutamente e essencialmente, enquanto que todo o resto a possui apenas por participação.
§ 5.    Prova pela ordem do mundo
209      1.    O argumento.
a)         Princípio do argumento. A prova pela ordem do mundo (ou argumento das causas finais) se apóia noprincípio de finalidade, e toma a seguinte forma: a organização complexa, objetivando um fim, exige uma inteligência ordenadora. Com efeito, apenas a inteligência pode ser razão da ordem, quer dizer, da organização dos meios objetivando um fim, ou dos elementos tendo em vista o todo que compõem: os corpos ignoram os fins e, por conseguinte, se os corpos ou os elementos corporais conspiram em conjunto, é necessário que sua organização tenha sido obra de uma inteligência.
b)         Forma do argumento. O argumento parte do fato da ordem universal. Esta ordem é evidente: considerado no seu conjunto, o universo nos aparece como uma coisa admiràvelmente ordenada, em que todos os seres, por mais diferentes que sejam, conspiram para um fim comum, que é o bem geral do universo. Por outro lado, cada um dos seres que compõem o universo manifesta uma finalidade interna, quer dizer, uma exata apropriação de todas as suas partes, objetivando o bem deste mesmo ser.
Ora, esta ordem é inteligível unicamente pela existência de um princípio inteligente, que ordena- todas as coisas a seu fim, e ao fim do todo que elas compõem. É isto que resulta do princípiodemonstrado mais acima. Ê necessário, então, admitir que existe uma Causa ordenadora do universo.
210      2.    Objeções.
a) O argumento não conduziria, a ima Inteligência infinita. É a objeção de Kant. O mundo, diz ele, não é infinito, e, se, de fato, é necessário uma inteligência ordenadora para explicar sua unidade interna, seria suficiente, a rigor, uma inteligência de um poder   seguramente prodigioso,  mas não formalmente infinito.
A objeção não procede, pois incide no erro de supor que a ordem do mundo resultaria de uma simples arrumação de materiais preexistentes. Neste caso, uma inteligência não infinita seria uma explicação suficiente da ordem do mundo. Mas tudo muda de figura se a ordem não é mais do que um aspecto do ser, sendo uma ordem interna, que resulta da essência e das propriedades-mesmas das coisas, ainda mais que o autor da ordem é, necessariamente, por isto mesmo, o criador do ser universal, a um tempo.. Poder infinito e Inteligência infinita.
b)    Fruto do acaso. É difícil negar que a ordem reine no mundo. Mesmo os ateus não o contestam. Mas para escapar à
conclusão do argumento, afirmam que a ordem do mundo pode ser explicada pelo acaso. O mundo atual, dizem eles, é o produto
de forças inconscientes e fatais; passou por fases extremamente diferentes da que conhecemos, e esta não se perpetuou a não ser graças à harmonia que estas forças misteriosas acabaram por gerar fortuitamente.
É fácil ver que esta explicação é, na realidade, fuga de uma. explicação. O acaso tem por caracteres a inconstânciae a irregularidade, o que é o contrário mesmo da ordem. O acaso pode, a rigor, explicar uma ordem acidental e parcial, mas não uma ordem que governa inumeráveis casos, e que se perpetua, seja no interior dos seres, seja em suas relações mútuas, com uma constância invariável.
c)    A evolução. Invocou-se, também, a evolução, para explicar a ordem do mundo. Mas a evolução, longe de estabelecer a ordem, a supõe, uma vez que se faz de acordo com leis e leis necessárias. A evolução exige, portanto, de forma absoluta, uma inteligência. É que as causas eficientes não excluem de forma alguma as causas finais: ao conutrário, o mecanismo não tem sentido, ou mesmo existência, senão pela finalidade. Por isso, já mostra mos (84) que as causas que podem explicar a evolução dos seres do universo não fazem mais do que obedecer a uma idéia, imanente, e, por conseguinte, supõem a existência de uma ordem anterior e superior a elas

EODICÉIA – Curso de Filosofia de Régis Jolivet



Curso de Filosofia – Régis Jolivet
TEODICÉIA
PRELIMINARES
198      1.    Natureza da Teodicéia.
a)         Definição nominal. A palavra Teodicéia vem de duas palavras gregas que significam justificação de Deus, e era reservada inicialmente às obras destinadas a defender a Providência contra as dificuldades que se levantam com o problema da existência do mal.
b)         Definição real. Hoje, o nome Teodicéia tornou-se sinônimo de Teologia natural, e se aplica ao conjunto do tratado de Deus. É aciência de Deus pela razão.
c)         Teodicéia e Teologia. A Teodicéia é então uma ciência racional; quer dizer que não recorre senão às luzes da razão natural. Difere por isto da Teologia, que toma por primeiros princípios, não os princípios da razão, mas os dados da Revelação.
2.    Importância da Teodicéia.
É quase desnecessário assinalar a importância e a utilidade da Teodicéia. A excelência de uma ciência está na razão da excelência de seu objeto. Ora, o pensamento não pode ter mais alto objeto do que Deus, Ser supremo, o princípio primeiro e fim derradeiro de todas as coisas. É no conhecimento e no amor de Deus que reside nossa perfeição e, por conseguinte, nossa verdadeira felicidade.
Por outro lado, nosso conhecimento do mundo e do homem jamais poderá ser completo, se não remontarmos a Deus como a causa de tudo o que existe, e a Moral não poderá ter  sólido se não recorrermos a Deus, soberano Legislador.
Enfim, a Teodicéia, demonstrando a existência de Deus, fornece à fé a primeira de suas bases racionais.
3.   Método da Teodicéia.
Deus não é acessível aos sentidos. Por isso, a Teodicéia não pode ser uma ciência propriamente experimental. Ela é, por excelência, uma ciência metafísica, na proporção em que seu objeto ultrapassa absolutamente a experiência sensível, e deverá por conseguinte usar o método racional (43). Mas como Deus só pode ser conhecido por nós através dos efeitos de seu poder, a Teodicéia deverá partir da observação dos fatos, para elevar-se daí até Deus. razão suprema destes fatos.
4.   Divisão da Teodicéia.
Podemos levantar, a respeito de Deus, três tipos de questões: podemos perguntar-nos se ele existe, qual é a sua natureza e quais são seus atributos, enfim, quais são as suas relações com o mundo. Donde a seguinte divisão da Teodicéia: a existência de Deus, — a natureza e os atributos de Deus, relações de Deus e do mundo.

PRIMEIRA PARTE
A EXISTÊNCIA DE DEUS
Antes de abordar as provas da existência de Deus, é mister indagar se estas provas são necessárias, e se sãopossíveis. Com efeito, de uma parte, os ontologistas sustentaram que era inútil demonstrar a existência de Deus, e, de outra parte, os fideístas e os agnosticistas negaram que fosse possível fazer esta demonstração. Devemos, então, começar por criticar estas duas opiniões.
CAPÍTULO PRIMEIRO
NECESSIDADE   E   POSSIBILIDADE   DE   UMA DEMONSTRAÇÃO
ART.   I.    O ONTOLOGISMO
199 1. O argumento ontológico. — Os ontologistas sustentam que não é necessário demonstrar a existência de Deus, porque, segundo eles, a existência de Deus é imediatamente evidente, e não se demonstra a evidência. Ela vale por si só.
Uns (Malebranche, GiOBErti) afirmam que nós temos a intuição de Deus na do ser universal. Donde o nome deontologismo dado especialmente a esta doutrina.
Outros (Santo Anselmo, Descartes) se limitam a sustentar que a existência de Deus é evidente "a priori", pelo simples fato de compreender o que significa a palavra Deus. Com efeito, dizem eles, a palavra Deus significa "o Ser que tem todas as perfeições". Ora, a existência é uma perfeição (impossível pensar, sem cair no absurdo, num "Ser perfeito que não existisse"!) Logo, Deus existe. Seria, então, impossível conceber Deus sem apreender ao mesmo tempo sua existência. — É este argumento famoso que foi chamado argumento ontológico.
2. Crítica do argumento ontológico. — Santo Tomás critica este argumento da seguinte maneira:
a)         Não é evidente para todos, mesmo entre os que admitem a existência de Deus, que Deus seja o ser absolutamente perfeito, e tal que se não possa conceber maior. Muitos filósofos pagãos disseram que o mundo era Deus; certos povos consideram como Deus o Sol ou a Lua.
b)          O sofisma ontológico. Mesmo supondo que a definição nominal de Deus seja para todos (‘o ser absolutamente perfeito", o argumento ontológico constitui um verdadeiro sofisma, pois passa indevidamente da ordem lógica para a ordem real: eu não posso conceber um ser perfeito sem o conceber como existente (ordem lógica), mas isto não prova que este ser perfeito existe (ordem real).
c) O ontologismo é, com mais forte razão, sofistico. Nós não vemos a Deus. Todo o nosso saber vem, direta ou indiretamente, da experiência sensível, e Deus é e permanece sempre para nós, mesmo ao final de nossas investigações e de nossas demonstrações, um Dí) ::s escondido, de tal forma fica além de nossa apreensão direta e de nossa compreensão natural.
Quanto à intuição do ser universal ou inteligível, de que falamos em Psicologia (141), e em Crítica (177), ela não ó de forma alguma a intuição de Deus ou do Ser infinitamente perfeito, mas a do ser em geral ou indeterminado.
A existência de Deus não nos é, portanto, imediatamente evidente, e tem necessidade de ser demonstrada. Mas esta demonstração será possível?
ART.    II.    O FIDEÍSMO E O AGNOSTICISMO
200 1. O argumento fideísta e agnóstico. — Os fideístas sustentam que a existência de Deus não pode ser conhecida pela razão natural, mas apenas pela fé. Os agnósticos negam igualmente o poder da razão e as luzes da fé.
O principal argumento de uns e outros é que os princípios de nossas demonstrações vêm dos sentidos, porque toda a nossa experiência é de origem sensível. Por conseguinte, tudo o que ultrapassa o sensível é incognoscível e indemonstrável pela razão, e a existência de Deus, ultrapassando o sensível, ê, ao mesmo tempo, indemonstrável.
2.    Crítica do argumento fideísta,
a) Crítica geral. Santo Tomás nota de início que a opinião fideísta e agnóstica injuria a razão natural, que encontra sua expressão mais perfeita na arte da demonstração, que, dos efeitos, se eleva ao conhecimento das causas. — Ela quebra a ordem das ciências e compromete a integridade do saber. Pois, se não há ciência no que ultrapassa a experiência sensível, é a ciência dos fenômenos da natureza que se torna a ciência suprema, e o conjunto do saber humano fica sem explicação derradeira. — Enfim, a opinião fideísta e agnóstica censura como vaidade o esforço constante dos filósofos, mesmo os maiores, para demonstrar a existência de Deus. Seria inconcebível que este esforço procedesse de uma ilusão.
b) Crítica especial. Santo Tomás responde ao argumento fideísta assinalando que em qualquer hipótese nosso conhecimento da existência de Deus tem uma origem sensível, uma vez que toma por ponto de partida os efeitos sensíveis do poder divino. Sob este aspecto, não nos pode conduzir a conhecer Deus perfeitamente, pois não existe nenhuma proporção entre suas obras sensíveis e sua natureza. Mas a demonstração tirada dos efeitos sensíveis é suficiente para nos fazer conhecer a Deus, como causa destes efeitos, o que é o próprio objeto da demonstração.
De resto, a melhor refutação dos argumentos fideístas e agnósticos consiste em expor as provas da existência de Deus de tal maneira que seu valor se imponha à inteligência e a domine pela evidência do verdadeiro.
Curso de Filosofia – Régis Jolivet

TEODICEIA


Quando os Iluministas fizeram acusações contra Deus, relacionadas ao problema do mal no mundo e também o da liberdade humana, os filósofos cristãos começaram a tecer de defesa de Deus frente a essas acusações, criando, assim, o termo Teodiceia. É evidente que Deus não precisa de defesa, mas a teologia que surgiu a partir dessas acusações se mostrou bastante útil e complexa.
O Catecismo da Igreja Católica formula e responde essa pergunta crucial:
"Mas por que Deus não criou um mundo tão perfeito que nele não possa existir mal algum? Segundo seu poder infinito, Deus sempre poderia criar algo melhor, Todavia, em sua sabedoria e bondade infinitas, Deus quis livremente criar um mundo em estado de caminhada para sua perfeição última. Este devir permite, no desígnio de Deus, juntamente com o aparecimento de determinados seres, também o desaparecimento de outros, juntamente com o mais perfeito, também o menos imperfeito, juntamente com as construções da natureza, também destruições. Juntamente com o bem físico existe, portanto, o mal físico, enquanto a criação não houver atingido a sua perfeição." (CIC 310)
Uma outra questão estudada pela Teodiceia refere-se as provas da existência de Deus. O Catecismo pode ser o ponto de partida para esta reflexão quando diz:
Criado à imagem de Deus, chamado a conhecer a amar a Deus, o homem que procura a Deus descobre certas vias para aceder ao conhecimento de Deus. Chamamo-las também de provas da existência de Deus, não no sentido das provas que as ciências naturais buscam, mas no sentido de argumentos convergentes e convincentes que permitem chegar a verdadeiras certezas. Estas vias para chegar a Deus têm como ponto de partida a criação: o mundo material e a pessoa humana. (CIC 31)
Estas vias são: o mundo e o homem. Por elas, o homem pode aceder ao conhecimento de uma existência de uma realidade que é a causa primeira e o fim último de tudo, e que todos chamam Deus (CIC 34) O estudo dessas vias de acesso ao conhecimento de Deus, bem como dos mencionados argumentos convergentes e convincentes será o principal objetivo desse curso.
Todavia, mais importante que estudar a teoria acerca desse assunto tão complexo é saber que se Deus existe realmente - e Ele existe - isso deve mudar completamente a forma de o homem viver sua própria existência nesse mundo.

Teodiceia é um ramo da teologia que trata da coexistência de um Deus todo-poderoso de bondade infinita com o mal.

O termo teodiceia provém do grego θεός - theós, "Deus" e δίκη - díkē, "justiça", que significa, literalmente, "justiça de Deus". O termo foi criado em 1710 pelo filósofo Alemão Gottfried Leibniz num trabalho intitulado Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l'homme et l'origine du mal. O propósito do ensaio era demonstrar que a presença do mal no mundo não entra em conflito com a bondade de Deus — ou seja, não obstante as diversas manifestações de iniqüidade no Mundo, este é o melhor dos mundos possíveis (verPanglossianismo.)
A teodiceia é a parte da Filosofia que pretende demonstrar racionalmente a existência e os atributos de Deus. Para isso, usa apenas a razão humana, sem utilizar nenhum registro sagrado.
Prevê que existe um Deus que nos dá livre-arbítrio, ou seja, opção de escolha. As escolhas, porém, não sendo feitas com responsabilidade, conduzem o homem ao mal natural ou o mal moral.

[editar]Origem do mal

Deus, no versículo 7 do capítulo 45 do livro de Isaías da Bíblia cristã, tratando-se como 'o Senhor', informa que Ele cria, entre outras coisas, não apenas a paz, mas também o mal:
"Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu sou o Senhor, que faço todas estas coisas."[1]
Desta forma a autoria de um mal observado num universo cristão, pode ser atribuída ao Deus cristão ou ao Diabo cristão. Devendo ser considerado cada caso em separado. Contudo, observa-se que a autoria de um mal observado é mais comumente atribuída ao último.[2]

A Teodicéia Tomista


A Teodicéia Tomista

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A Teodicéia Tomista

por Paulo Faitanin - UFF


1. Origem: O vocábulo teodicéia foi utilizado pela primeira vez no século XVII, por W. Leibniz [1646-1716], servindo para dar título à sua obraEnsaio de Teodicéia, sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal de 1710. Posteriormente, passa a designar uma parte da filosofia que estuda a existência de Deus, sua natureza, atributos e operações à luz da razão. Daí também ser denominada 'Teologia Natural', ou 'Teologia Racional'. O termo foi formado pela junção de qeo/j + dikh/ = theodiké, daí 'teodicéia', que literalmente significa justiça divina ou de Deus, mas que assume o sentido de defesa de Deus e, mais amplamente, o estudo racional de Deus. Por isso, também se lhe atribui o nome de 'Teologia filosófica'. Aqui Teodicéia é tomado para significar a Teologia Natural de Tomás de Aquino.
2. A Teodicéia Tomista: Desde os primórdios o homem revelou-se ordenado naturalmente ao que é sagrado, enquanto isso significa um bem absoluto, infinito, perfeito, transcendente e inviolável a que naturalmente busca a razão como o fim de sua operação, cujo efeito de sua posse é a felicidade. Diz-se sagrado o que é em si mesmo perfeito e transcendente ou o que possui alguma qualidade pela qual se diz sacra. Ela existe, se realiza e se manifesta no sujeito, não como princípio essencial, senão acidental. Ao que é em si sagrado e transcendente a tradição denominou Deus. O ser humano é um caso especial, pois o seu espírito, dom de Deus, criado à imagem e semelhança de Deus, se une a carne vivificando-a e sacralizando-a, já que é pelo mesmo espírito que o homem diz-se partícipe do que é santo e transcendente. Corpo e espírito no homem são sagrados pela íntima e cúmplice relação com Deus. Pois bem, Deus é o que é em si mesmo santo e transcendente. A consciência da necessidade da existência de um ser sagrado em si mesmo que transcenda as nossas vidas não resulta ou é efeito da convivência em comunidade ou em sociedade, mas é exigência natural da própria razão humana. Ao longo da história o homem foi tomando consciência, em diversos períodos e culturas, da necessidade da existência e demonstração do sagrado. Indo da mitologia à teologia, passando pela filosofia, o homem percebeu que o sagrado era o que lhe transcendia e que não poderia alcançá-lo absolutamente por suas próprias forças naturais se o sagrado não se revelasse ao próprio homem e dinamizasse nele, para além de sua disposição natural, a potencialidade de conhecê-lo. Neste sentido Deus é inevitável ao coração humano, que O busca incessantemente, como a razão última de sua própria perfeição. Foi este mesmo ardor natural pelo sagrado que revelou ao homem sua ordenação ao seu cultivo e ao seu culto, ao que foi denominada religião, que nada mais significa senão a ordenação natural do homem a Deus. Oriunda da natureza humana, a consciência do sagrado dispõe-se como hábito na natureza humana, pelo qual o homem desenvolve a virtude da religião acerca da qual gera uma ciência pautada naturalmente nos invioláveis princípios da razão. Podemos, deste modo, naturalmente conhecer Deus [pela razão], porque Deus antes nos conhece e permite-nos [pela revelação] conhecê-Lo. Portanto, a consciência do sagrado nos conduz à inevitável experiência de Deus, cujo efeito é a religião e cujo fundamento é o próprio Deus, pois quis inscrever na natureza humana uma ordenação natural a Ele, dispondo-a a constituir uma religião que indo de percepções míticas, fosse gradativamente se estruturando em rito e leis, nas quais revelassem o próprio Deus. Tomás de Aquino ciente da possibilidade de que o homem pela razão natural poderia chegar ao conhecimento de Deus e convicto da necessidade de conhecê-Lo, desenvolveu criteriosamente uma Teologia Natural que, por um lado, investiga racionalmente a existência de Deus e, por outro lado, o modo como pela razão podemos conhecer algo da essência de Deus. A seguir exporemos o fundamental de sua Teologia Natural.
2.1. A existência de Deus: (a) Deus: o fim último da razão - nos ensina o Aquinate que o fim último do homem e de toda substância intelectual se chama felicidade ou bem-aventurança, pois isto é o que deseja como fim último toda substância intelectual e o deseja por si. Por esse motivo, a bem-aventurança e a felicidade última de qualquer substância intelectual é conhecer Deus [C.G. III, 25]; (b) Os conhecimentos de Deus: não se opõe o sensível ao inteligível - porque são diversos os modos de conhecer Deus, Tomás destaca que o conhecimento sensível não torna impossível o conhecimento de Deus, pois o nosso intelecto, a partir do sensível, pode ser conduzido ao conhecimento do que Deus é e de outras verdades semelhantes próprias do primeiro princípio [C.G. I,3]; (c) Distinção: a teologia revelada e teologia natural - dois são os caminhos para o conhecimento de Deus, um pela luz natural da razão, insuficiente em si mesmo, outro sobrenatural à razão, mas não estranho à razão, ou seja, o revelado [In De Trin. lec.2, q.1,a.4,c]. Por isso, o Angélico assinala uma distinção genérica, além da específica, entre a teologia sobrenatural e a natural, pois nada impede que os mesmos objetos de que as disciplinas filosóficas tratam, enquanto são conhecíveis à luz natural da razão, sejam tratados por outra ciência, como conhecidos à luz da revelação divina [Sum. Theo. I,q.1,a.1,ad2]; (d) Fronteiras: luz sobrenatural e luz natural - a teologia natural tem uma fronteira bem determinada com relação à teologia sobrenatural. Esta última é ciência obtida pela luz sobrenatural da Revelação e é teológica, enquanto a outra é obtida pela luz natural da razão e é formalmente filosófica e metafísica. Diz-nos Tomás que era necessária a existência de uma outra doutrina, além das disciplinas filosóficas, que servisse para a salvação do homem e que, embora fosse pesquisada pelos princípios da razão, pois esta doutrina se vale também de argumentos, como as demais ciências, não para demonstrar os seus princípios, mas para, a partir deles, manifestar alguma outra verdade [Sum. Theo. I,q.1,a.8,c], se fundamentasse na revelação divina, já que o homem se ordena naturalmente a Deus [Sum. Theo. I,q.1,a.1,c]. Pelo dito anteriormente, tal doutrina é ciência por serem os seus princípios superiores, verdadeiros, coerentes e não contrários à razão natural, de tal maneira que a razão pode discursar e estabelecer ciência acerca do que lhe é revelado [Sum. Theo. I,q.1,a.2,c]. É ciência una, pois pode ser considerada sob uma mesma razão, seja como objeto da revelação divina ou como objetos tratados em ciências filosóficas diferentes [Sum. Theo. I,q.1,a.3,ad2]. A teologia sobrenatural é, por excelência, ciência teorética e contemplativa [Sum. Theo. I,q.1,a.4,c], mas isso não a exclui de ser também prática, porque de fato, a teologia por teorética que é, traduz-se na vivência humana como a mais prática, no pleno exercício da vida, já que a teoria não se opõe à prática naquilo que é verdadeiro e essencial, embora toda a sua dimensão prática nada seria se não se realizasse perfeitamente e melhor na teorética, cujo ápice é a contemplação. Neste sentido ela é a mais nobre e sublime das ciências, e isso por duas razões: pelo objeto que estuda - Deus [Sum. Theo. I,q.1,a.7,c] - e pelo que causa no homem que a adquire: ciência, sabedoria e santidade [Sum. Theo. I,q.1,a.5, c e 4.6,c]. E por isso mesmo é a mais digna de ser aprendida e ser ensinada, pois cabe o homem que a aprende e contempla oferecer aos outros as coisas contempladas [Sum. Theo. II-II, q.188,a.6,c]. Seja para penetrar as metáforas e os vários sentidos que os textos da Sagrada Escritura encerram a razão, por sua luz natural e com o auxílio da luz sobrenatural da revelação divina, penetra o mistério para além das metáforas e sentidos do texto sagrado. Somente assim começa a responder àquele ardor natural de conhecer Deus. Mas urge imediatamente considerar se Deus existe e se sua existência pode ser demonstrada.
2.1.1. A possibilidade e a necessidade da demonstração de Deus: (a) Deus: O inevitável - Deus é o absoluto inevitável à razão humana, Ele é evidente em si e para si mesmo, mas não é a sua existência para nós, já que não a alcançamos conhecer nele mesmo, sendo pois necessário que a demonstremos pelo que nos são mais conhecidos, os seus efeitos; e assim penetrarmos algo do conhecimento de sua essência [Sum. Theo. I,q.2,a.1,c]. (b) Existência: a não evidência da existência de Deus - não nega que exista em nós ou que esteja impresso naturalmente em nós algum conhecimento geral e confuso da existência de Deus, isto é, Deus como a felicidade do homem [Sum. Theo. I,q.2,a.1,ad1], embora não a conhecemos como ela é em si mesma, mas a porta de entrada para o conhecimento da essência de Deus, naquilo que nos é possível conhecer, é a sua existência. Ora, porque a sua existência não é evidente para nós como o é para Deus, nossa razão deve procurar demonstrá-la pelos efeitos das obras de Deus. (c) Demonstração: é possível demonstrar a existência de Deus - como dissemos, porque se Deus não é evidente para nós, e se Ele existe, os efeitos de suas obras enquanto se revestem da materialidade do mundo criado, pode nos revelar algo do seu existir. Portanto, se a existência de Deus não é evidente para nós, pode ser demonstrada pelos efeitos por nós conhecidos [Sum. Theo. I,q.2,a.3,c]. (d) Agnosticismo: nega a possibilidade de conhecer a Deus - o agnosticismo, palavra de a-gnosis [sem conhecimento] e que designa a impossibilidade de demonstrar e conhecer a Deus. Costuma-se dizer que o agnosticismo é a ante-sala do ateísmo; e isso é bem verdade, pois negará quem não conhece. O agnóstico radical é o que se encontra a um passo do ateísmo, ou seja, nega a possibilidade de conhecer a Deus e não busca sequer os meios para fazê-lo, como que conduzido pela dita ignorância invencível, ou seja, sei que não sei, mas não quero desvencilhar-me dela. Há ainda o agnóstico por comodismo ou moderado, que possuindo os meios não aplica o esforço necessário para conhecer, seja por medo ou mesmo ignorância. (e) Ateísmo: nega a existência de Deus - o ateísmo palavra oriunda de a-theos [sem Deus] designa a posição filosófica conseqüente do radical racionalismo que supõe a premissa da inexistência de um Deus transcendente, necessário e princípio de tudo. Assume basicamente três formas: o especulativo [estritamente racionalista filosófico em que exclui Deus da cosmovisão: Nietzsche, Freud, Sartre], o prático [atitude nem sempre racionalista dos que dizem crer, mas na prática vivem como se não cressem, num indiferentismo religioso e vida materialista] e o militante [também prático, mas não necessariamente estritamente racionalista, pois sugere muitas vezes argumentos passionais e relativistas, como os defendido pela postura tipicamente marxista, que prega um ateísmo ativo e até agressivo, na medida em que declara abertamente uma guerra intelectual contra Deus e aqueles que n'Ele crêem, enquanto procuram construir uma verdade anti-teísta. (f) Ontologismo: o argumento a priori - ou seja, aquele que afirma que a proposição pensada 'Deus é' encerra necessariamente a afirmação de sua existência e que, por isso mesmo, não seria necessário demonstrá-la. Tal postura apresenta dificuldades, pois não é necessário que, conhecida a significação do nome Deus, imediatamente se saiba que Deus é, já que isso não é evidente a todos, mesmo para aqueles que O admitem. Nem mesmo é suficiente que postulem pelo nome Deus algo acima do qual nada de maior se possa conceber e que por conta disso não fosse necessário demonstrar a sua existência na realidade, pois não é necessário que exista na realidade este algo acima do qual nada de maior se possa conceber [C.G.I,11]. Neste sentido, se é possível demonstrar a existência de Deus é conveniente que seja por argumentos a posteriori.
2.1.2. As provas da existência de Deus: (a) As provas a posteriori: são os procedimentos racionais que vão dos efeitos à causa - são os modos mais natural e racional da razão perscrutar acerca de Deus, cuja existência não é evidente. (b) As 5 vias: as provas da existência de Deus - que Tomás nos apresenta, partindo dos efeitos à causa afirmam a necessidade da existência de um ser imóvel, causa incausada, necessário, por essência absoluto e ordenador de tudo: 1ª via - afirma a existência de um primeiro motor imóvel, depois de provar a impossibilidade de um movimento infinito, 2ª via - afirma a existência de uma causa eficiente incausada, depois de analisar a impossibilidade de ir-se ao infinito afirmando uma série de causalidade, 3ª via - afirma a existência de um ser necessário por si e não por outro, depois de provar a contingência dos seres que existem e da impossibilidade de ir-se ao infinito na ordem da causalidade, 4ª via - afirma a existência de um ser por essência, depois de constatar que há graus diversos de seres uns mais outros menos perfeitos exige-se a existência de um sumamente perfeito e a 5ª via - afirma a existência de uma inteligência ordenadora, depois de estabelecer que tudo o que existe opera por um fim, o qual não existiria inscrito na natureza das coisas se algum ser assim não o tivesse feito e ordenado [Sum. Theo. I,q.2,a3,c].
2.2. A essência de Deus: (a) Conhecimento da essência de Deus: Incompreensibilidade: a nossa inteligência não compreende a essência divina como ela é em si mesma, posto que um intelecto criado não possa entender com as suas forças naturais o que Deus é, a essência divina [STh.I,q12,a4,c]. A incompreensibilidade de Deus não supõe que Deus seja incognoscível, senão, ao contrário, é incompreensível por ser infinitamente cognoscível. Cognoscibilidade: nesta vida o nosso intelecto não tem um conhecimento perfeito e adequado da essência divina, pois o que dela conhecemos é por meio dos efeitos de sua operação, que nos conduz à causa [CG. III,c47]. Embora não seja um conhecimento compreensivo da essência divina, o nosso intelecto pode ter um conhecimento verdadeiro de Deus, sendo tal conhecimento propriamente conhecimento e genuinamente humano, na medida em que parte dos efeitos de sua operação e nos permite conhecer a sua existência [STh.I,q12,a12,c]. Conhecimento analógico de Deus: todo conhecimento que o nosso intelecto tem de Deus é analógico, ou seja, aquele que se dá quando se atribui um nome comum a vários sujeitos em sentidos que são em parte diversos e em parte idênticos [STh.I,q13,a5,c], de tal maneira que nada pode predicar-se de Deus e das criaturas de modo unívoco, pois as perfeições que nos efeitos são múltiplos e diversos, na Causa são de modo simples e uno [CG. I,c.32]; nada pode predicar-se de modo equívoco ou metafórico, como quando um mesmo nome ou conceito serve para identificar coisas essencialmente diversas [CG.I,c.33]. Os nomes divinos: os nomes que damos a Deus não são todos sinônimos [STh. I,q13,a4,c/CG.I,35/Comp.Th.I,c.24]. Estes nomes são os atributos divinos que por analogia chegamos a conhecer [In I Sent. d2,q1,a3]. Os nomes ou atributos divinos são de duas espécies: entitativos e operativos [STh.I,q3]. O nome próprio de Deus: dado que o ser se identifica com Deus e expressa toda a sua realidade e, vice-versa, toda a realidade do ser está compreendida e realizada em Deus, nenhum outro nome, nenhuma outra palavra exprime melhor do que essa o que Deus é, a sua essência, a sua natureza. Por isso, o Aquinate afirma que 'aquele que é', é o nome próprio de Deus [STh. I,q13,a11,c]. (b) Os atributos entitativos de Deus: Simplicidade: Aquele que é o primeiro princípio do ser, o possui de modo excelentíssimo, pois qualquer coisa está presente de maneira mais excelente na causa do que seu causado; mas o modo mais excelente de possuir o ser é aquele pelo qual uma coisa é idêntica ao ser; portanto, Deus é o ser, ao passo que nenhum composto é o ser mesmo; portanto, Deus não é composto absolutamente por nada [In I Sent. d8,q4,a1]. Oniperfeição: Deus é absolutamente perfeito em si e não por possuir em ato alguma perfeição que não tinha ou que a tivesse só em potência, seja porque em Deus não há potência ou perfeição da qual esteja privado [CG.I,c28]. Bondade: a bondade divina é essencialmente a efusão do amor de Deus sobre si mesmo. Deus é bom por essência, porque possui absoluta perfeição [STh.I,q6,a3/CG.I,c38]. Infinitude: dado que o ser divino é recebido num sujeito, pois Deus é o seu próprio ser subsistente, fica claramente provado que Deus é infinito e perfeito [STh.I,q7,a1,c]. Onipresença: nada escapa à presença de Deus, pois Ele está intimamente presente a todas as coisas, sendo mais íntima a sua presença às coisas que as coisas a si mesmas [STh.I,q8,a1,c/Comp. Th.I,c.135]. Imutabilidade: todo movimento e mudança no ser implicam potencialidade passiva, que supõe a potência; mas em Deus não há potência, porque é ato puro; logo Deus é imutável [STh.I,q9,a1,c]. Eternidade: só aquelas coisas que se movem são medidas com o tempo, porque o tempo, como diz Aristóteles, outra coisa não é que a medida do movimento. Mas Deus é totalmente isento de movimento; por isso, não pode ser medido pelo tempo. Assim, não há nada nele nem antes nem depois; não possui o ser depois do não-ser, nem o não-ser depois do ser; nem há nele qualquer série de sucessões, porque elas não podem ser concebidas sem o curso do tempo; por isso, ele não tem nem princípio nem fim, e deve possuir todo o seu ser ao mesmo tempo; nisso consiste o conceito de eternidade [CG,I,c.15]. Unidade: se houvesse vários deuses, seria preciso que se diferenciassem em alguma coisa; essa coisa caberia a um e não caberia a outro; e se essa coisa fosse uma privação, um deles já não seria plenamente perfeito; se fosse uma perfeição, um deles não a possuiria; é, pois, impossível que haja vários deuses; por esse motivo, os próprios filósofos da antigüidade, como que constrangidos pela verdade mesma, ao reconhecer a existência de um princípio infinito, reconheceram que esse princípio é um só [STh. I,q11,a3,c]. Unicidade: Deus além de uno é único e é isso que lhe atribui a unicidade; cada uma das demais realidades são unas, mas não únicas; Deus é uno e único por causa de sua absoluta simplicidade, infinitude e perfeição [STh.I,q11,a3/Comp. Th.I,c.15]. Beleza: a beleza divina se funda em sua bondade, cuja contemplação maior não há [STh.I,q5,a4,ad1]. Transcendência: Deus se distingue do mundo e não é o ser de tudo o que existe, nem mesmo a matéria primeira, nem a totalidade de tudo o que existe; por tudo isso é transcendente, embora a sua transcendência não anule a participação das criaturas por vestígio, imagem e semelhança de alguma perfeição divina [In I Sent.d38,q1,a1/STh.I,q2,a8/CG.I,25/De nat. mat.c1/In VIII Phys.lec.21]. (c)os atributos operativos: Oniciência: Deus é inteligência infinita [STh.I,q14,a1/De ver.q2,a2]; Deus se conhece a si primeiramente e absolutamente [STh.I,q14,a2,c] e tudo mais absolutamente [STh.I,q14,a9,c]. Deus conhece o mal, enquanto este é privação de bem no sujeito e não que o mal tenha essência cognoscível [STh.I,q14,a10]. A vontade divina: em Deus há vontade [STh.I,q19,a1] e Ele mesmo é o objeto de sua vontade [CG.I,74]. E querendo a si mesmo quer tudo o que cria [STh.I,q19,a2] e o que não por necessidade, mas livremente STh.I,q19,a3]. Sua vontade é imutável e infalível [STh.I,q19,a6/CG.I,82]. Não é causa do mal e nem o quer em si mesmo [STh.Iq19,a9/CG.I,95]. A onipotência divina: em Deus há potência ativa, que é a que não imprime limite, nem é efeito de passividade advinda de matéria [In IX Met. lec.1/CG.II,7/STh.I,q25,a1]. Seu poder é infinito e atual [STh.I,q25,a1,ad3/CG.II,9], por isso é onipotente [STh.I,q25,a3]. Se a contradição é impossível para a constituição do que existe e é, Deus não pode a contradição, pois assim como repugna nossa inteligência, a forciori a divina [STh.Iq25,a3/CG.II,9]. Assim sendo o seu poder se estende a tudo o que não implica ou haja contradição, pois havendo contradição, como o poder de fazer com que o que tenha existido, não exista, não se aplica ao poder de Deus pela contradição in genere dos termos. A Criação: é efeito da onipotência divina; Deus é a causa eficiente do mundo sem que se valha da existência de algo para criá-lo, pois ao criar o cria do nada - ex nihilo - [CG.II,16]. Deus cria livremente, porque não o faz por necessidade, por isso sua obra é obra de amor e bondade de um ser uno e único, sendo tudo o que Ele cria obra exclusivamente dele [CG.II,21]. Nada contraria a fé que Deus em suas idéias tenha pensado o mundo desde a eternidade e que só o tenha criado com o tempo e com a sua criação iniciado o tempo. Uma vez tratado a questão do início do cosmos, o Aquinate direciona a sua atenção para a análise do que constitui o universo. Sua atenção se direciona, portanto, para o estudo dos princípios do ser e do movimento da substância natural que compõe o universo [Quodlibeto. 12, a.7/Sum. Theo., q. 46, a.2,c/In II Sent. d.1, q.1, a.5, c/D aeter. mundi]]. A conservação: a criatura depende do criador e Deus por amor conserva o que é bom, pois manifesta a sua beleza, por meio da qual dá continuação ao ser criado [Comp. Th.I,c.130/STh.I,q104,a1/CG,III,65]. A moção divina na criatura: Deus por sua onipresença se faz presente em tudo que cria e O percebemos pelo efeito de sua ação nas coisas, mantendo-as no ser e no operar [In I Sent. d37,q1,a1,ad4]. A providência: Deus ao conservar providencia o que pode faltar, segundo a sua bondade e justiça [STh.I,q22,a1]. O governo divino: sua providência ordena, governa universalmente as criaturas, conforme suas naturezas, curando os males que pela confluência natural ou artificial surjam em sua obra ou inclusive valendo-se deles para extrair um bem maior, ainda que de imediato o homem desconheça os seus desígnios, não predestinando nada e a ninguém ao mal. Nenhuma perfeição pode faltar a Deus. De tal maneira que Deus é perfeito [S.Th.Iq4a1]. Como perfeição de sua essência afirma-se a bondade: Deus é o sumo bem e todas as coisas são boas pela bondade divina [S.Th.Iq6a1-4]. A finitude e a mutabilidade são imperfeições, portanto a infinidade [S.Th.Iq7a1-4] e a imutabilidade [S.Th.Iq9a1-2] são perfeições divinas. Nestes termos não há o que possa medir o ser de Deus, senão Deus mesmo, pois como Ele não há o que não tenha tido nem início nem término no tempo, já que Ele é eterno [S.Th.Iq10a1-6]. Ora, se não há nada mais tão perfeito além de Deus, necessariamente Ele é uno e único [S.Th.Iq11a1-4]. Portanto, nada, nem ninguém conhece a Deus como Ele mesmo se conhece [S.Th.Iq14a2-4] e nada nem ninguém pode conhecer perfeitamente como Deus conhece todas as coisas que d'Ele são distintas [S.Th.Iq14a5-6]. Por isso Deus é onisciente, pois a tudo conhece. Deus assim sabe o que quer e pode o que sabe, pois ele é onipotente [S.Th.Iq25a1-6]. Daí haver em Deus perfeita vontade [S.Th.Iq19a1-5]. Por isso o Apóstolo diz na Carta aos Efésios 1,11 que Deus é “Aquele que faz segundo a deliberação de sua vontade”. Ora, o que fazemos por uma deliberação voluntária, não o queremos por necessidade. Logo, Deus não quer por necessidade aquilo o que quer. Portanto, há livre-arbítrio em Deus [S.Th.Iq19a3 e 10]. Mas porque é perfeita quando quer, Sua vontade se cumpre sempre [S.Th.Iq19a6] e é imutável. O mal é privação do bem, mas Deus é o sumo bem e não há privação nenhuma no seu querer, de tal modo que sua vontade é sempre do bem. Logo, Deus nunca quer o mal [S.Th.Iq19a9]. Como canta o livro da Sabedoria 11, 25, Deus ama tudo o que existe e nada detesta do que fez. Por isso sabiamente João revelará que Deus é amor [S.Th.Iq20a1-4]. Porque amor é doação, a Deus convém o atributo justo, pois por amor e sabedoria Deus dá a cada um de acordo com a sua dignidade. Por isso, a sua justiça é a verdade [S.Th.Iq21a3]. Deus que tudo sabe, conhece as deficiências das criaturas; mas não convém a Deus entristecer com a miséria das criaturas, mas Lhe convém ao máximo, por seu amor, bondade e sabedoria, fazer cessar essa miséria. Daí que Deus é misericordioso [S.Th.Iq21a3]. Por isso, como se diz no livro da Sabedoria, 15,3 “És tu Pai que tudo governas por tua providência”, para que nada falte às criaturas Deus por amor e bondade provém de bens aos que dele carece [S.Th.Iq22a1-3]. Para que nada falte aos homens, segundo o que lhe convém prover, Deus com sua bondade e amor predestina bens aos homens para que supram as suas dificuldades. Portanto, a predestinação é ato de providência. O homem é livre para aceitar ou não a estes bens. Mas nem por isso Deus que é sumo amor e bem deixará de lhe prouver de bens necessários para que alcance a sua perfeição [S.Th.Iq23a1]. Aos que se abrem e aceitam estes bens Deus os ama ainda mais e os elege. Porém não deixa de amar aos que não se abrem e aceitam os seus bens, embora não seja Deus que não os eleja e os condene ou os predestine ao mal, mas antes são estes que não desejam a eleição divina e por se afastarem dela, afastam-se ainda mais do bem e do amor, condenando-se ao mal que é justamente a privação do amor e bem divinos. Portanto não é Deus que predestina alguém ao mal, mas antes a ignorância e o orgulho humanos – que nascem do mau uso da liberdade e da privação do conhecimento de algum bem – que predetermina o homem a afastar-se de Deus e a anelar-se ao mal. Daí que por Deus ninguém é predestinado ao mal. E porque a tudo ama, a ninguém faltarão bens para alcançar a perfeição. E qual é a perfeição do homem? Conhecer a Deus. Mas é preciso esclarecer melhor o que são estes bens e como Deus ama a tudo o que cria e a ninguém condena, senão que alguém se condena a si mesmo por orgulho que é conseqüência da ignorância do amor divino e do fechar-se aos bens que Deus prouve ao homem – por misericórdia – para ajudá-lo a superar suas deficiências e alcançar a perfeição que consiste em conhecê-Lo. Porque Deus ama a tudo o que criou e sobremaneira aos homens, criaturas que Deus quis por si mesmas, criando-as à sua imagem e semelhança e revestindo-as de nobreza e as dignificando-as em si mesmas, a todos igualmente chama à santidade [1Ts 4,3: “Esta é a Vontade de Deus: a vossa santificação”]. Que consiste a santidade? Consiste em conhecer a Deus. Ver Deus face a face. A Bem-Aventurança. Pois bem, se santidade é conhecer a Deus, a vocação à santidade é vocação à sabedoria, pois não há saber maior que os homens possam alcançar que saber Deus. Ser santo é, pois, buscar ser perfeito como Deus [Mt 5,48]. Por muito nos amar e por havermos perdido o elo original com Deus, Deus se encarnou para mostrar-nos e revelar-nos o modelo de santidade: seu Filho Jesus Cristo que se nos revela como caminho, verdade e vida. Cristo é modelo e tudo o que ele fez, ensinou e ordenou deve ser observado como caminho de santidade. Deus por amor re-estabelece o elo com a encarnação, paixão e morte do seu filho: é preciso morrer no mundo e para o mundo enquanto se ama ao próximo, para viver em Deus e para Deus enquanto se ama a Deus. Nenhum homem está fora desta vocação à santidade e à sabedoria pela parte de Deus, a não ser por arbítrio equivocado da própria liberdade de cada homem. Na história da humanidade encontramos um contínuo exercício de amor por parte de Deus a fim de trazer-Lhe o que Lhe pertence: nós. O projeto de salvação é um projeto de resgate. Vimos que por arbítrio equivocado [um arbítrio pode equivocar-se por ignorância, por orgulho, por paixão desenfreada pelo mundo e suas coisas, que obscurecem os olhos da razão e do coração diante da graça] da própria liberdade o homem pode preferir os seus desejos e ao mundo, do que a vontade de Deus e por isso não se abandonar na vontade de Deus. Mas, nem mesmo assim Deus o abandonará, pois sua vontade é imutável e faz parte de sua vontade revelar-se plenamente a cada um dos homens. Deste modo, Deus mantém-se fielmente aberto ao retorno de cada homem e haverá muito mais alegria do retorno deste, que pelo arbítrio fechou-se às graças de Deus, do que pelo justo que se mantém fielmente aberto a elas. Deus continuará minando o curso da vida de cada homem que se fechou à sua graça, com abundantes oportunidades de retorno pela mesma graça. Mas, diante da graça, os olhos humanos muitas vezes desiludidos [ou iludidos] com o mundo, magoados pela injustiça que é conseqüência do não converter-se a Deus, petrificam-se e não percebem a vontade de Deus manifesto na graça e nem como Deus se faz presente em suas vidas pela graça, pois acreditam que a graça de Deus deve advir-lhes para tirar-lhes da pobreza material, da dor que aflige a carne, da morte que dilacera, embora a eficácia da graça não seja contrária a isso, a graça é, sobretudo, um bem espiritual que fortalece o espírito para iniciar o encontro de Deus com o homem já neste mundo, dando um tom sobrenatural ao coração e à razão humana diante de toda a miséria humana, fazendo-o entender e dando-lhe sentido à vida, na medida em que a vida plena do homem somente se realizará na morada de Deus. Além de tudo isso a graça não é triste é força eficaz do amor, que edifica na dor e na miséria das pessoas no mundo a alegria e a fé de esperar pela graça a promessa de um reino de Deus onde ninguém mais vai sentir dor, chorar e ficar triste. A graça é bem espiritual que fortalece o homem diante destas misérias e faz descobrir no homem que o amor divino se concretiza nesta vida quando por amor somos capazes de doarmo-nos aos outros para a diminuição da dor alheia, da miséria alheia independentemente se esta doação implique no aumento da nossa; pois já não importa para quem já se encontra vacinado pelo amor divino, manifesto pela graça, sentir qualquer dor neste mundo. Pois bem a graça é o amor divino revelado por Deus a nós num ato contínuo que nos conserva durante toda a vida no ser, na espera que num instante desta vida nós descubramos o quanto nos ama e o quanto nos quer. Deus nunca deixa de estar e fazer-se presente na vida do homem, mas pode o homem com o coração encrudelecido não percebê-la jamais. Deus se manterá enviando-lhes graças durante toda a vida e pede, chama e recorda ao homem da importância de seu papel. Ele não quer perder nenhuma ovelha. Ele se manterá aberto ao retorno do filho pródigo e foi por eles que Deus enviou o seu próprio filho. Deus traçou um projeto de salvação para cada homem e não descansará enquanto em Teu coração não repousar aquele filho pródigo. Neste projeto de salvação cada homem tem o seu papel no uso de suas faculdades e de sua ação. Deus não quer pela força, porque não nos fez pela força. Ele nos quer pelo amor, porque nos fez por amor; e o amor é livre. S. Agostinho tem razão ao afirmar que o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Deus. A liberdade humana pode aprisionar-se nos desejos do mundo ou libertar-se transcendendo ao próprio mundo por força e ação da graça que Deus lhe dá. Mas somente abrindo-se a ela poder-se-á compreender o ardor e eficácia da graça no homem. E porque a eternidade é a presença imutável de Deus diante de todo tempo, bastaria tão-somente um instante de nosso tempo em que houvesse efetiva conversão [abertura à graça], para que Deus nos abundasse de graças e nos justificasse na graça e nos amasse como eleitos. Deus elege a todos, mas dentre todos alguns não o elegem e isto não basta para a salvação [e aos que O elegem ele os justifica no amor]: numa relação perfeita de amor, ambos devem se amar mutuamente. Deus não nos quer impor o seu amor, quer sim que o descubramos, pois a imposição seria o extermínio da autonomia de nossa liberdade, apanágio este que nos dignifica e nos torna semelhantes a Deus. E estes que não o elegem se fecham à graça aprisionando suas liberdades aos desejos do mundo. Que diremos: que estão predestinados à condenação? Claro que não! Porque como dissemos todos estamos predestinados por uma vocação universal à santidade e bastaria tão-somente um instante de abertura sincera ao amor de Deus que o Pai abriria os braços à espera do filho que há muito se foi e que há muito o esperava com a mesa posta para um grande banquete. Somos predestinados à santidade e nunca à condenação ou à maldade. Ainda que Deus possa prever a condenação de alguém isso não anula ou contraria a sua obra de criação que é obra de amor; porque não é Deus quem condena, mas o homem a si mesmo ao não reconhecer em Deus o seu Abba [Pai]. Deus pode então prever que um homem que se portando muito mal se afasta cada vez mais de sua predestinação à santidade? Claro que Sim! Mas isso em nada diminui o amor divino para a salvação daquela alma, pelo contrário, oferece-lhe tanto mais graças para que aumentem as ocasiões de conversão [Rm 5,20: “Mas onde abundou o pecado superabundou a graça”], embora em última instância a abertura à graça dependerá da liberdade, pois a graça não força a natureza livre, pois bate à porta e entra se a liberdade a deixar entrar. Por isso a graça supõe a natureza e não a destrói. Somos predestinados à santidade, mas não predeterminados a ela [embora Deus não meça esforços para ver-nos com Ele; e se fôssemos predeterminados à santidade não seríamos condenados; mas também não somos nem predestinados e nem predeterminados à condenação], pois somos livres e no mau uso da liberdade que nos leva a fechar-nos à graça que é o amor de Deus, poderemos ser condenados, enquanto isso significa o oposto à santificação; assim, pois, com a liberdade se pode confirmar a predestinação à vocação à santidade, enquanto abertura à graça de Deus ou a condenação, enquanto fechamento à graça de Deus. Os que o elegem recebem mais graças [se a liberdade abre a porta da natureza fica mais fácil entrar o que ora está para entrar], porque sendo Deus amor se doa ainda mais aos que a Ele se abrem, libertando a liberdade da escravidão dos desejos do mundo. Pois bem, a liberdade humana – a que Deus respeita e não muda, porque é autônoma [mas não é absolutamente ilimitada, pois a liberdade humana somente não é livre para eleger outra coisa quando se encontra diante do que melhor elegível não há e diante de quem é autor da natureza] – é o que pode coroar a natureza humana convertendo-a no arbítrio a Deus ou avertendo-a no arbítrio do caminho de Deus. Ainda sobre a liberdade humana há que se dizer que para a santidade a liberdade humana não é independente de Deus; portanto, no estado de sua miséria, mais do que nunca depende da graça de Deus. Portanto, não basta ser livre para lograr a santidade, pois a liberdade por si mesma não se basta e não é suficiente para atingir a este fim, já que estando corrompida a natureza humana, corrompeu-se também o seu ato essencial que é a liberdade. E porque ninguém dá a si mesmo o que não possui como poderia a liberdade dar-se a si mesma a santidade se não a possui? Ou como poderia ela por si mesma corrompida e sem auxílio divino pela luz da graça encontrar o que havia perdido na escuridão? Portanto, a graça pela qual o homem recebe a justificação por meio de Cristo não vale somente para a remissão dos pecados já cometidos, mas também como ajuda para não cometê-los. E esse é a ação da graça sobre aqueles que no mau uso da liberdade estão presos no pecado, pois somente a graça poderá ajudá-los a não mais cometê-los. Por isso a graça é necessária ao homem. A conseqüência deste arbítrio pode ser: tender a caminho avesso ao de Deus, daí a aversão a Deus, no sentido de que não versa o mesmo caminho de Deus; tender ao caminho que verte a Deus, que leva a Deus, daí conversão a Deus, no sentido de que versa o mesmo caminho de Deus. E porque Deus conhece [onisciência] o que pode impedir a conversão humana – a quem profundamente ama – [amor], porque conhece as misérias e as deficiências do homem, pode [onipotência] e quer [liberdade] providenciar [providência] bens abundantes [graças] dadas por amor [misericórdia], sem limitar ou predeterminar a liberdade, para que o homem na autonomia de sua vontade possa se abrir livremente à graça e verter-se ao caminho de Deus [conversão] e retorne ao que foi predestinado [predestinação]: à santidade e à sabedoria [salvação]. Portanto, Deus quando cria o homem o pré-destina à santidade e à sabedoria, mas não o predetermina, porque para o bem e para o mal que possa realizar o homem Deus não determina a sua liberdade; por isso ama o que cria e continua criando e conservando com e no amor o que faz e não mede – antropomorficamente falando – nenhum esforço para trazer de volta o Seu tesouro, o homem, que se perde no mundo ao deparar-se com um mundo corrompido pelo pecado, herança da aversão pessoal de Adão, transmitida na origem aos homens. O homem se esquece de Deus, mas Deus nunca do homem. Mas o homem por esquecê-Lo e até mesmo desconhecê-Lo [ignorância] volta-se no uso de seu bem mais precioso – a liberdade – para o arbítrio equivocado das coisas e bens que o mundo lhe oferece, crendo encontrar neles aquela saudade do infinito que sente no seu mais íntimo: saudade de Deus. Mesmo conhecendo esta deficiência humana, Deus permanecerá com o seu plano e projeto de salvação do homem, estando aberto ao homem e proverá graças suficientes e necessárias para que o homem, mesmo que num único instante de sua existência possa a vir a recordar-se de que há um Deus que é Pai amoroso e que fará tudo para tê-lo de volta, mesmo tendo que respeitar a autonomia da liberdade humana. Portanto, podemos dizer que Deus porque não predestina ninguém ao mal, ama tudo o que cria e as cria no amor e se há perda do amor por parte do homem é conseqüência do desamor que é o mal [privação do bem] que há no mundo, como conseqüência do pecado e ao que se atrela e se aprisiona a sua liberdade. Independendo de tudo isso Deus ama o homem e espera uma resposta dele.

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