Durante anos, o país africano foi propriedade privada do rei Leopoldo II. A extrema brutalidade contra os nativos fizeram o episódio ser conhecido como o ‘Holocausto esquecido da África’
FABIO PREVIDELLI PUBLICADO EM 06/11/2019, ÀS 16H09
No final de 1884, potências europeias se uniram para dividir a África entre si, no entanto, um pedaço no centro do continente não foi deixado nem aos africanos (como aconteceu com a Etiópia e Libéria) e nem aos Estados Colonialistas.
Muito pelo contrário, essa área gigantesca foi reconhecida como propriedade privada pertencente única e exclusivamente ao rei Leopoldo II. A determinação que aconteceu na Conferência de Berlim (de 15 de novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885) permaneceu até o início do século 20.
Entretanto, esta condição peculiar não foi a razão pela qual o Estado Livre do Congo se tornaria reconhecido. O motivo foi muito mais sombrio e sangrento: a extrema brutalidade e falta de compaixão com que a população local era tratada fizeram com que muitos historiadores chamassem o episódio de “Holocausto esquecido da África”.
Confira imagens chocantes sobre esses casos.
A região africana — que foi dominada como colônia da Bélgica — ficou conhecida como uma das experiências mais violentas de dominação contemporânea
O Congo é um dos maiores e mais relevantes países da África, tendo um passado sombrio de crimes e atrocidades cometidos pela dominação colonial. Domínio dos belgas desde a Conferência de Berlim, a região, que posteriormente se tornaria um país, chocou o mundo diante de denúncias de abusos e ações criminosas por parte dos ocupadores.
O país até hoje sofre consequências do caos político criado pela colonização e pelos atritos desenvolvidos pela política de morte da Bélgica, que não apenas colocou grupos étnicos diferentes em batalha como também embaralhou a distribuição demográfica regional. Por esse motivo, o Congo sofreu diversos episódios de golpes e guerras civis e hoje mergulha numa precariedade estrutural que impede seu desenvolvimento.
Conheça 5 fatos sobre o período mais sombrio de sua história, marcado pela dominação belga.
1. Propriedade privada
O Congo Belga é o nome dado ao território ultramarino da Bélgica a partir de 1908, quando a região passou por mudanças de status jurídico. Isso porque, originalmente, o Congo era a maior propriedade privada do mundo, sendo dominado pelo rei belga Leopoldo II, que liderou os horrores cometidos. A essa grande propriedade, dava-se o nome de Estado Livre do Congo.
2. Exploração diária
Entre as ações hediondas que ocorriam no Congo Belga, denunciadas pela Comunidade Internacional, a escravidão era a mais comum. Em nome da extração de recursos naturais valiosos, — como minérios e borracha — a Force Publique e o Exército criaram um regime de dominação baseado em castigos e punições, que incluíam a chibata, armas modernas, tortura, afogamento, estupro, incineração de aldeias e assassinato.
Uma das técnicas de controle que ficou conhecida por seu uso no Congo Belga era a dilaceração ou extirpação de membros como punição pelo não cumprimento da cota de trabalho. Basicamente, quando os senhores estavam insatisfeitos com a coleta dos trabalhadores, uma mão ou um pé era arrancado. Assim ocorria sucessivamente, até que homens e mulheres não fossem mais capazes de trabalhar, sendo executados ou deixados para morrerem de inanição.
3. Denúncias
Além da disputa colonial e ética, propriamente ditas, outras potências do norte atuaram como revezes ao projeto de governo dos belgas na África. Por isso, países como EUA, Inglaterra e França se esforçaram na criação de impeditivos contra a Bélgica de Leopoldo, incluindo uma série de denúncias contra o regime congolês.
O Reino Unido, claro, tinha como compromisso principal sua hegemonia na disputa por territórios e o enfraquecimento do oponente continental. Porém, a primeira denúncia contra os crimes de Leopoldo vieram de uma boa intenção: George Washington Williams, um escritor e militar estadunidense, que anunciou ao mundo as barbáries ocorridas no país após uma viagem de investigação.
4. Independência
Assim como a maioria dos países africanos, a emancipação política do Congo Belga veio acontecer depois da Segunda Guerra Mundial, após esforços diversos de negociação e guerra contra o domínio colonial. O processo de independência do país passou, principalmente, por um movimento diplomático, associado com programas de autonomia econômica e algumas revoltas mais violentas, tendo como principal condutor o Movimento Nacional Congolês, em sua ala de caráter socialista, anti-imperialista e pan-africanista.
Seu principal preceptor era Patrice Lumumba, um líder político envolvido com o movimento desde antes da independência, quando fazia representações do país. Com sua participação, o Congo declarou sua independência em 1960, quando Lumumba foi eleito primeiro-ministro e convencionou o nome República do Congo à nação. Lumumba se manteve no poder até sofrer um golpe de Mobutu Sese Seko, 12 semanas depois.
5. Genocídio
As atrocidades cometidas no Congo Belga estão entre as mais violentas do mundo contemporâneo, e as diversas denúncias feitas contra a Bélgica tentaram incluir o crime de genocídio. Porém, essa acusação foi alvo de grande polêmica. Segundo a defesa belga, nunca houve um alvo étnico nas ações do Estado, com intuito de eliminação, então a acusação não procederia.
Porém, uma resolução sobre esse tema da ONU declarou que um genocídio implica em qualquer prática deliberada de matança de membros de um grupo étnico distinto, em que a intenção inclui destruição, mesmo que parcial, da população. Portento, o que aconteceu no Congo foi genocídio
Durante os protestos antirracistas, antifascistas e antissistema que vêm tomando o mundo, com foco nos EUA, muitas estátuas em homenagem a nomes ligados ao escravismo e ao colonialismo estão sendo pichadas, desfiguradas, derrubadas ou removidas de seus pedestais por esforços de mudança dos paradigmas de memória.
Conheça os nomes de figuras que tiveram seus monumentos alterados nessa onda de manifestações
Símbolos de homens do passado ligados ao escravismo foram destruídos ou removidos pelos próprios governos por pressões da sociedade. Um dos casos mais famosos se encontra com a figura do navegador Cristóvão Colombo, responsável pelo início do genocídio indígena na América, cuja estátua fora decapitada em Boston e derrubada em Richmond. Estátuas suas também foram vandalizadas em Wilkes-Barre e Springfield.No Reino Unido, a homenagem ao traficante de escravos Edward Colston foi lançada num rio, mesmo destino de John McDonogh, empresário colonialista, em Nova Orleans. Já no Oregon, uma série de protestos nas universidades derrubou duas estátuas de Alexander Phimister Proctor, que fazia referência aos pioneiros europeus da colonização (The Pioneer e The Pioneer Mother).
Tiveram o mesmo destino monumentos a figuras importantes da defesa da escravidão nos EUA: Thomas Jefferson, em Portland, e Jefferson Davis, em Richmond. Já outras estátuas foram removidas pelo governo após muitas pressões e depredações contra estátuas. No Reino Unido, por exemplo, um monumento a Robert Milligan, traficante de escravos, em Londres, e uma estátua de um menino escravo carregando peso em Dunham foram retirados.
Além disso, após fortes depredações de uma estátua do rei Leopoldo II na Antuérpia (Bélgica), o símbolo foi removido, assim como uma representação do militar colonizador John Hamilton, na cidade de Hamilton, na Nova Zelândia.
Vandalizadas
Os protestos ao redor do mundo também picharam com acusações de racismo e destruíram parcialmente estátuas de figuras polêmicas de tempos mais recentes. É o caso de Winston Churchill, em Londres.Nos EUA, figuras como Robert E. Lee (Richmond), general confederado e Matthew Deady (Eugene), colonizador foram pichados. O mesmo ocorreu em Melbourne (Austrália) com a imagem do navegador e colonizador James Cook e, em Auckland (Nova Zelândia) com George Grey. Uma imagem de Indro Montanelli, em Milão, Itália, foi desfigurada em protestos antifascistas por sua ligação com o programa de colonização do chifre africano de Mussolini.
Pichações também afetaram figuras como Robert Dundas, Henry Temple (Visconde de Palmerston) e Tomas Carlyle, aristocratas britânicos, no Reino Unido, assim como placas em Londres e Berlim com nomes associados ao racismo.
Monumentos foram ameaçados de destruição, mas não chegaram a ser atingidos. É o caso de Robert Clive (militar colonial) e Robert Peel (político) em Londres, além de Gandhi e Mandela, protegidos contra eventuais ataques da extrema-direita, e o fundador do escotismo Robert Baden-Powell (militar e colonialista) em Poole, que teve interferências estéticas mas foi protegido pela população.
Em outro protesto, em Dunedin, na Escócia, duas estátuas sofreram com pichações e cartazes: o poeta Robbie Burns, figura central do país, mas acusado de racismo e crimes de estupro, e a Rainha Vitória, responsável por ações de colonização na Ásia, na África e no próprio Reino Unido.
Pedidos de remoção
Além disso, já movimentos da sociedade civil pelo mundo que apelam ao governo para que estátuas ligadas ao escravismo sejam derrubadas, mas que ainda não sofreram ataques propriamente ditos dessas manifestações.
Na cidade de São Paulo, Brasil, abaixo-assinados pedem a derrubada do Monumento às Bandeiras, que homenageia o movimento de adentramento à colônia por caçadores de índios, e a estátua de Manoel Borba Gato, famoso pela prisão de indígenas e africanos para o mercado de escravos.
Além disso, em Boston, existe uma petição pela derrubada de uma estatua de Abraham Lincoln com um escravo aos pés; uma do ex-presidente William Henry Harrison em Cincinnati; e no Texas, pela retirada de Lawrance Sullivan Ross, político ligado ao escravismo.
Em Oxford, há pedidos contra um monumento ao empresário Cecil Rhodes, central na colonização da África, e em Montreal (Canadá), contra o proprietário de escravos James McGill.
Uma das principais características da monarquia brasileira, única na América do Sul, foi o mantimento do sistema escravista enquanto a tendência americana e mundial era a emancipação e o apelo à mão-de-obra assalariada.
Entretanto, o governo dos Orléans e Bragança no Brasil penou para articular uma forma de abolição e modernização econômica, estando muito mais acomodado na estrutura escravista que governava.
Ao mesmo tempo, é comum na memória brasileira associar Pedro II e a princesa Isabel a um liberalismo antiescravista, que de repente expõe uma contradição.
Inicialmente, é importante remeter que o governo imperial brasileiro tinha como cabeça principal um membro da Casa de Bragança, dinastia de reis que governavam Portugal desde 1640 e cujo herdeiro se fixou em terras tropicais.
Além disso, ao monarca brasileiro fora prometido um trono vazio desde os 5 anos de idade, quando seu pai deixou o Brasil para governar Portugal. Nesse sentido, Dom Pedro II foi bem instruído a ser um bom articulador político e um entendedor do mundo da política.
A grande marca dos Bragança é a sua assinatura colonial.Governantes da colônia brasileira, desde a independência da Espanha, tinha como tradição o governo de uma sociedade servil marcada pela escravidão.
No século XIX, com o Brasil já independente, criou-se a narrativa (mérito principalmente do historiador Varnhagen) de que a monarquia brasileira tinha a missão espiritual de prosseguir os trabalhos de Portugal de civilização das terras americanas e a criação de um reino católico unificado.
O projeto civilizador brasileiro, extremamente hierarquizado e escravista, somado à formação do Estado-Nação no Brasil centrado numa máscara parlamentarista da monarquia (cuja possibilidade de intervenção do rei e o Poder Moderador impedem a classificação de um verdadeiro parlamentarismo democrático), criou um cenário onde o Brasil é um país liberal governando uma sociedade servil.
Ao mesmo tempo em que em todo o governo imperial, antes de uma pauta humanitária (pois só será assim na segunda metade do século XX), a escravidão era uma pauta de governo estritamente ligada à economia.
A maioria massiva da produção nacional utilizava a mão-de-obra escrava no início do século XIX, ao mesmo tempo em que, durante o Império, foi contrabandeado mais escravos africanos do que durante todo o período colonial acumulado.
E, nesse ponto, o governo de Pedro I se esforçou para manter, em termos constitucionais e institucionais, a escravidão como uma lacuna jurídica. Não há legislação sobre a escravidão, ela só é permitida por ausência de proibição. Parte disso está no constrangimento que seria ter estatutos legais da escravidão em pleno nascimento do capitalismo industrial internacional.
Já com Pedro II, o pragmatismo político orientou a relação do governo com a questão servil. Antes das supostas noções do monarca em relação à humanidade dos escravizados, o monarca sabia que a base de seu poder eram as elites escravistas da monocultura do café, principalmente o eixo do Vale do Paraíba, e os ricos traficantes de escravos do Atlântico.
E como boa parte das transações econômicas no Império envolvia o tráfico, mesmo que ele fosse proibido, o governo colocou em prática uma articulação inteligente: quanto mais alforrias eram concedidas, mais escravos eram adquiridos.
Havia, no século XIX, praticamente uma indústria das alforrias para manter o tráfico em circulação. Enquanto isso, a proibição do tráfico pelos acordos internacionais e as leis de 1831 e 1850 eram burlados pela negligência intencional do Estado.
Um dos principais empecilhos da ordem escravista, além das grandes revoltas no interior do país, era a pressão internacional comandada pela Inglaterra a favor da mudança econômica em direção ao capitalismo assalariado.
Pedro II, em sua articulada diplomacia, propagava a imagem do Brasil como Estado Ocidental liberal enquanto encobria a realidade escravocrata no campo brasileiro. A figura montada de Pedro II como soberano moderno e liberal tinha um importante papel diplomático para um país como o Brasil que funcionava praticamente como um Estado-pirata: contra todas as alianças internacionais, manteve o sustento do tráfico proibido e a entrada de escravos no país.
O abolicionismo, por outro lado, teve origens no medo que a elite sentia de uma revolta generalizada de negros que trabalhavam no campo, em favor de sua libertação, medidas reparatórias e distribuição de lotes de terra. Ao mesmo tempo em que percebia uma tendência nacional que abandonava o uso de escravos e migravam gradativamente para o trabalho assalariado.
O haitianismo e a possibilidade de estourar uma reforma agrária exigiram mudanças urgentes para manter o poderio econômico das elites cafeicultoras.
Por esse motivo que, a partir da década de 1870, o abolicionismo em diversas formas legais (Lei do Ventre Livre, Sexagenário, Eusébio de Queirós e outras medidas que adiaram a abolição) se tornou uma bandeira essencial dos conservadores do Partido Saquarema, depois apropriada pelo governo, também conservador, na mão da Princesa Isabel, que assinou uma lei de importante cunho econômico pela readaptação do Brasil nos critérios internacionais.