Soja transgênica no Brasil: anotações sobre a legislação de plantio, comercialização e direitos da propriedade intelectual
29-09-2005
Este trabalho tem por objetivo orientar os produtores de soja e demais interessados na questão, acerca das peculiaridades que envolvem as legislações que tratam do plantio, comercialização e direito da propriedade intelectual da soja transgênica (OGM) Roundup Ready (RR) no Brasil, bem como relatar, em breves anotações, sem juízo de valor que reflita posições de cunho pessoal, os problemas que ocorreram e continuam ocorrendo em torno dos fatos concretos e destas normas.
1- NOÇÃO SOBRE ORGANISMO GENÉTICAMENTE MODIFICADO (OGM) – A SOJA TRANSGÊNICA
Preliminarmente, convém sublinhar que se entende por Organismo Geneticamente Modificado – OGM – todo organismo cujo material genético (DNA/RNA) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética, envolvendo atividade de manipulação de DNA/RNA recombinante, mediante a modificação de segmentos de DNA/RNA natural ou sintético que possam multiplicar-se em uma célula viva. É, desta forma, exemplo de OGM (no campo da agricultura) o milho Bacillus Thumriengienses (Milho BT), que, após a manipulação genética, obteve uma proteína com a capacidade de matar o inseto que se alimenta de partes da planta original, sendo transformado (milho original), assim, em uma planta biocida (milho BT). Também é o caso da chamada soja RR, na qual se introduziu um gene com o código de uma proteína que a torna resistente ao herbicida glifosato, veneno que é utilizado para exterminar ervas (de toda a espécie) que infestam a lavoura, mas preserva a cultura.
2- RESUMO SOBRE A POLÊMICA DO CULTIVO DA SOJA TRANSGÊNICA RR
Posto isto, no caso específico da soja transgênica Roundup Ready (RR), os três principais argumentos que têm sido apresentados para justificar sua cultura são: primeiro, a eliminação da necessidade de aplicação de vários tipos de herbicidas, propiciando economia de custos; segundo, a eficácia plena do herbicida Roundup (no extermínio de todo tipo de ervas e inços prejudiciais à soja), significando maior produtividade; e terceiro, a redução da contaminação ambiental, diante da eliminação da variedade de herbicidas que seriam utilizados em uma plantação convencional.
De outro lado, os que são contrários ao plantio da RR e de outros transgênicos questionam a falta de estudos imparciais e aprofundados sobre o impacto destes organismos na saúde e no meio ambiente, além de colocar em dúvida os propalados efeitos positivos sobre a economia individual e coletiva nacional.
A única certeza a respeito deste assunto é de que não existe perspectiva de encontrar-se tão cedo um denominador comum para a questão, prometendo os embates entre as duas correntes prosseguirem ainda por muitos anos, sendo lícito prognosticar, ainda, que uma solução definitiva só virá daqui a algumas décadas, após a cristalização dos efetivos efeitos benéficos e/ou maléficos da soja transgênica.
3- A LEI VIGENTE SOBRE BIOSSEGURANÇA, SUA DUVIDOSA LEGALIDADE E IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO IMEDIATA
O corolário das dúvidas, como não poderia deixar de ser, reflete-se na atual e novíssima regulação sobre transgênicos, a claudicante lei nº 11.105 (conhecida como “nova Lei da Biossegurança”) de 24 de março de 2005, que “estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGM) e seus derivados”, cuja inconstitucionalidade é objeto de argüição perante o Supremo Tribunal de Federal, em ação direta (ADIN) promovida pelo Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles.
Esta lei, cumpre gizar, possui potencial e mecanismos para liberar, de vez e sem mais questionamentos científicos, a introdução do plantio e comercialização de soja transgênica no Brasil.
Porém, a par de sua discutida constitucionalidade, a própria estrutura desta “norma da biossegurança”, em si, é uma fonte de problemas e entraves à sua aplicação, como relata recentíssima reportagem do respeitado periódico jornalístico O Estado de S. Paulo, publicada em 24 de agosto de 2005, no Caderno Vida & Saúde, retranca Ciência, folha A18, onde se lê:
“A nova Lei de Biossegurança foi aprovada pelo Congresso no início de março, após sete anos de brigas e contestações jurídicas que empacavam a aplicação da lei anterior. Ao fim de uma longa batalha envolvendo ministros, pesquisadores, ambientalistas, religiosos e produtores agrícolas, chegou-se a um texto que reconhece a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) como autoridade responsável pelo controle das atividades com OGMs.
O problema é que a composição da comissão foi alterada e os antigos membros foram destituídos. Durante a vigência da antiga lei, os entraves legais giravam em torno da aprovação de liberações e experimentos de campo com plantas transgênicas. Mas os processos mais rotineiros, como certificações e autorizações para estudos de laboratório, continuavam tramitando.
Agora, tudo parou. Desde março nenhum processo é avaliado pela CTNBio, pela simples razão de que não há ninguém para fazer a avaliação. No momento, a comissão é formada apenas pelo secretário-executivo, Jairon Santos do Nascimento, e uma secretária. ‘De todos os momentos desde a aprovação da primeira lei, em 1995, este é a pior’, diz o cientista Luiz Antonio Barreto de Castro, ex-presidente da CTNBio e recém-empossado secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Sem a regulamentação, diz ele, continuará a imperar uma ‘moratória branca’ à biotecnologia no País.”
Portanto a “nova Lei de Biossegurança”, vigente, além de sua duvidosa constitucionalidade que ainda será analisada pelo Supremo Tribunal Federal, depende de regulamentação para ser aplicável. E para que se tenha uma idéia da morosidade e dificuldades que ainda serão enfrentadas (caso a lei seja julgada constitucional – “válida”), para tanto, transcrevemos outro trecho da citada reportagem:
“A regulamentação depende da Casa Civil, que já possui um projeto de decreto formulado pelo MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia). A Ministra Dilma Roussef deverá convocar uma reunião do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), composto por 11 ministros, para aprovar o texto e encaminhá-lo ao presidente Lula. Mas a polêmica continua. A grande discussão agora nos bastidores é se o decreto deverá também ser submetido a consulta pública (votação pela população), o que atrasaria ainda mais sua aprovação.” (o grifo e as explicações entre parênteses são nossos)
Logo, na impossibilidade de dar eficácia à norma, o que deverá continuar ocorrendo em torno do plantio e da comercialização da soja transgênica RR é o que acontecia até o advento desta lei, pelo menos por ora inaplicável (lei nº 11.105/2005, nova “Lei da Biossegurança”).
Examinemos, então, os antecedentes.
3.1- DISPOSIÇÕES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL SOBRE O MEIO AMBIENTE
Estatui a Constituição Federal (Lei Magna ou Lei Maior) promulgada em 5 de outubro de 1988 (em vigência), no Capítulo VI, “DO MEIO AMBIENTE”:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Par. 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
...
II- preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
...
IV- exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V- controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
...
VI- proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam o animais a crueldade.
... ”
3.1.2- A POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E OS INSTRUMENTOS PARA O SEU EXERCÍCIO
Este preceito e determinações, contidos na Carta Magna da Federação do Brasil, recepcionaram (receberam) e convalidaram as disposições já existentes na lei nº 6.938/81, que trata da “política nacional do meio ambiente” e criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA – (art 6º), composto pelos “órgãos e entidades da União, dos Estados e do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e a melhoria da qualidade ambiental” (também art. 6º).
No âmbito da lei 6.938/81 foram decretados os “instrumentos” da “política nacional do meio ambiente” (art. 9º), ficando expressos como tais, dentre outros, “a avaliação de impactos ambientais” (inciso III) e “o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras” (inciso IV), a serem exercidos primordialmente pelos órgãos estaduais (dos estados da Federação) e supletivamente pelos órgãos federais, conforme expresso no artigo 10 da lei nº 6.938/81, a seguir:
“A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA – e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.”
3.2- A “PRIMEIRA LEI DA BIOSSEGURANÇA” E AS DECISÕES JUDICIAIS DA INCONSTITUCIONALIDADE DOS PERMISSIVOS QUE DEFERIRAM A CULTURA DA SOJA TRANSGÊNICA
Posto isto, em 5 de janeiro de 1995 foi editada a lei nº 8.974, mais conhecida como “primeira Lei de Biossegurança”, a qual restou promulgada com veto do Presidente da República ao artigo que criava a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio –, órgão colegiado multidisciplinar que teria a finalidade de prestar apoio técnico, consultivo e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança relativa a OGMs. Seria competência da CTNBio, ainda e principalmente, a emissão de pareceres técnicos de processos relativos a atividades que envolvessem OGMs, cujos julgamentos (?), pelos Ministérios competentes, deveriam obrigatoriamente observar (!) os pareceres conclusivos (!) emitidos pela CTNBio. (vide art. 7º, ‘caput’, ‘in fine’, e incisos VII e VIII)
Em que pese o veto do Presidente da República à criação da CTNBio, o decreto nº 1.752/95, editado para regulamentar esta “primeira Lei da Biossegurança”, deu competências e composição à malsinada Comissão, que, à revelia da sanção presidencial, assim “nasceu” e foi vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
Foi perante este Ente (CTNBio) mal nascido e de amparo legal duvidoso que a Monsanto pleiteou a liberação para o cultivo da soja transgênica RR (apresentando como subsídio do seu pedido um estudo (?) denominado Análise de Risco – Risk Assessment – realizado (?) nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Porto Rico e Argentina), havendo ele sido autorizado com dispensa do exigível “Estudo de Impacto Ambiental e Relatório e Impacto no Meio Ambiente”, sob o estranho argumento de que a análise alienígena mostrava-se mais adequada se comparada ao EIA/RIMA.
Esta lei (8.974/95), entretanto, da mesma forma que sua “filha bastarda” (CTNBio) e sua injustificável autorização para plantio da RR, foram de pronto questionadas judicialmente, visto que, de acordo com o que acima foi exposto, a competência atribuída à CTNBio, por via direta ou indireta, fere a Constituição ao limitar a competência dos estados e municípios (que compõem a Federação) para proteger o ambiente, além de afrontar o artigo da Lei Maior que determina ao Poder Público exigir estudo de impacto ambiental para a instalação de atividade potencialmente degradadora da natureza.