sábado, 16 de fevereiro de 2013





Crítica a Freud





Quando garoto, Sigmund Freud sonhava ser ministro ou general. Seu ídolo era o guerreiro cartaginês Aníbal, inimigo de Roma que atravessara os Alpes com seu exército e 37 elefantes. Em vez disso, estudou Medicina, especializando-se em neurologia. Seus feitos não se realizaram em campos de batalha: o fã de Aníbal jamais esteve na guerra e só conheceu os Alpes nas férias de verão. Mas o criador da psicanálise nunca renunciou às suas fantasias de cabo de guerra. Aos 43 anos escreveu: “Não sou cientista, tenho o temperamento de um conquistador e a curiosidade, a audácia e a perseverança de um aventureiro”.
A um ano de completarem-se os 60 anos de sua morte e celebrar-se a publicação de A Interpretação dos Sonhos, o revolucionário da alma vai aos poucos perdendo a auréola, que, por muito tempo, o defendeu dos ataques constantes. Uma nova geração de críticos, mais radical do que as anteriores, está derrubando o monumento a Freud e transformando em cinzas sua doutrina psicanalítica. Mais grave: segundo seus adversários atuais, a implosão não requer muitos explosivos, pois, há tempos, a outrora soberba fortaleza do rei Édipo já se tornou ruína, não deixando nenhum aspecto da psicanálise a salvo de críticas bem fundamentadas.
O psicólogo suíço Klaus Grawe considera “totalmente ultrapassado” o modelo tripartido do “aparelho psíquico”, com sua divisão esquemática em id, ego e superego. O mesmo valeria para a concepção psicanalítica dos “estágios instintivos durante o desenvolvimento da criança: anal, oral e edipiano. Para Grawe, esses são conceitos que não “frutificaram” na teoria e na prática terapêutica.
Na doutrina freudiana dos desejos e instintos reprimidos, que dirigem o comportamento humano como “regentes secretos” da obscuridade do inconsciente, o Deutsche Universitätszeitung ressalta “ecos de uma época contrária ao prazer”. Para muitos, Freud aparece tão nu quanto o personagem da lenda dos roupas novas do imperador. O historiador britânico Richard Webster diz que ele não passou do “criador de uma complexa pseudociência, que deveria ser considerada uma das grandes loucuras do civilização ocidental”.
Conto-do-vigário – Ao contrário, porém, do que acontece na lenda, em que a observação da criança abriu os olhos do povo deslumbrado, os vereditos dos críticos de Freud, até agora, permaneceram sem efeito. Há vinte anos, o médico ganhador do Prêmio Nobel, Peter Medawar, declarou que a psicanálise era “o mais terrível conto-do-vigário do século”, prevendo seu breve desaparecimento. Os mitos freudianos, no entanto, cravaram-se profundamente no consciente coletivo.
Nas brigas familiares, na TV, nas conversas de mesa de bar surgem como que espontâneos os conceitos básicos que interpretam ou condenam socialmente o comportamento de nossos semelhantes. Manfred Pohlen e Margarethe Bautz-Holzherr, psicoterapeutas de Marburgo, queixam-se da “máquina de interpretação” criada por Freud. Não há um só recanto da cultura ou da sociedade que escape “à mania do esclarecimento” da psicanálise. Até mesmo os já mortos, de Goethe a Karl Marx, de Nietzsche a Schopenhauer, de Stalin a Hitler, todos podem ser traduzidos de acordo com as regras da interpretação psicanalítica, das quais não escapam nem sequer heróis míticos da Antigüidade ou religiões de culturas estrangeiras. Segundo Pohlen e Bautz-Holzherr, a psicanálise tornou-se um “poder colonialista” espiritual, subjugando todo o mundo.
Tal como outros iconoclastas, Freud passou de rebelde a criador de uma “nova ortodoxia”, uma doutrina de salvação terrena, que ostenta claros aspectos das “tradições judaico-cristãs”. No recém-publicado Why Freud Was Wrong, Richard Webster tenta explicar como o neurologista vienense – racionalista e agnóstico convicto – tornou-se o fundador de uma religião e guru de um movimento espiritual universal. Sua resposta: ambição desmedida e messianismo foram as forças-motrizes daquele que, no fim da vida, gostava de comparar-se a Moisés.
Cedo amadureceu em seu espírito o sentimento de ter uma missão superior. Jacob, pai de Freud, um mercador de tecidos viajante, mudou-se com mulher e filhos para Viena, em 1860, como tantos outros milhares de migrantes judeus do leste do império austro-húngaro. Todas as esperanças da família, que com dificuldades se adaptou ao novo ambiente, concentraram-se sobre o filho Sigmund, nascido em 1856. O menino, o mais velho de oito irmãos, não os decepcionou. Formou-se nos estudos secundários aos 17 anos e com 24 anos tornou-se doutor em medicina. Aos 29 anos, já era livre-docente da universidade.
Favoritos – A mãe endeusava-o (“Sigi, meu menino dourado”, costumava dizer), o que ele interpretava como sinal de ser um escolhido, algo de que se recordaria por toda a vida. Em 1917, anotou que os que foram os favoritos de suas mães jamais perderiam “aquele sentimento de conquistadores”, garantia de sucesso. Esse entranhado desejo de vencer orientou Freud e levou-o a descaminhos. À procura de temas de pesquisa originais, o jovem médico fez experiências com cocaína. A sugestão viera de um médico militar prussiano que galvanizara seus recrutas estafados com a droga.
Depois de ter experimentado cocaína, Freud teceu-lhe loas num artigo, chamando-a de verdadeira panacéia. Elizabeth Thornton, pesquisadora americana da obra do pai da psicanálise, acredita que ele foi cocainômano por um longo tempo. Os indícios estão nas cartas algo desvairadas que enviou à sua então noiva e futura mulher, Martha Bernays. Pouco depois, participou, com igual entusiasmo, das pesquisas de um amigo médico chamado Wilhelm Fliess, para quem havia um relação estreita entre os órgãos olfativos e os sexuais. Partindo dessa premissa exótica , Fliess, um otorrinolaringologista , tratava distúrbios sexuais com operações nasais. Freud ficou tão impressionado com as dúbias experiências do colega que se deixou operar por ele várias vezes, no afã de livrar-se de patologias neuro-sexuais. Só se distanciou dessa sangrenta terapia sexual depois de ter quase perdido (matado?) uma paciente, vítima de uma intervenção nasal malograda.
Histerias – Freud seguiu à caça de descobertas sensacionais. Outro colega, o clínico geral Josef Breuer, despertou seu interesse pela histeria, doença da moda no fin de siècle, que podia provocar paralisias ou alucinações ( hoje, por motivos ignorados, esse mal não existe mais). Breuer queria curar mulheres histéricas por meio de hipnotismo e Freud entusiasmou-se com a idéia, não tardando a aplicá-la em seu consultório. Com a tenacidade de um inspetor de polícia, investigou em suas histéricas motivos sexuais secretos, que ele considerava como causas da moléstia.
Em maio de 1895, junto com Breuer, Freud publicou os Estudos sobre Histeria. Para Webster, os relatórios terapêuticos do chamado “livro fundamental da psicanálise” são contos de fadas. O pesquisador comprovou que nenhuma das cinco pacientes mencionadas foi definitivamente curada. Em sua opinião, a maioria nem sequer sofria de histeria. Nem mesmo “Emmy von N.”, que Freud apresentou como seu exemplo mais significativo.
Gagueira – “Emmy von N.”, em verdade Fanny Moser, procurou o médico com toda a sorte de dores. Era viúva de um industrial e uma das mulheres mais ricas da Europa. Sua fala era entrecortada por estalos de língua involuntários e, quando excitada, seu discurso era interrompido por gagueira e um tique nervoso que retorcia suas feições. Freud metralhou a paciente com perguntas sobre a infância, de cunho sexual, para, depois, declará-la curada. No entanto, segundo Webster, ele poderia ter reconhecido que a sra. Moser sofria da síndrome de Tourette, um complexo de sintomas que aparece depois de uma meningite. O mal, já bem conhecido, revela-se pelos indícios da doença de Fanny.
Os motivos que levaram Freud a desconsiderar esse diagnóstico óbvio, a despeito de conhecer pessoalmente o descobridor da doença, o francês Gilles de la Tourette, levam o pesquisador britânico a afirmar que os fundadores da psicanálise operavam no limite da charlatanice. Os magros resultados da terapia de Freud não prejudicaram sua fama de psicanalista. Em 1900, ele era considerado o último recurso para doentes nervosos desenganados pela medicina tradicional.
No início, Freud conquistou sobretudo as mulheres das famílias judias vindas do Leste, que sofriam a perturbadora coerção de terem que se adaptar rapidamente aos padrões culturais da Europa Ocidental, um problema de assimilação que ele conhecia por experiência própria. Quando, todos os domingos, visitava sua mãe, Freud era acometido por cólicas estomacais. Seu pai, Jacob, sempre se esforçou para integrar-se à sociedade, mas nunca conseguiu sucesso como comerciante, em Viena.
Assim, o filho, Sigmund, bem-sucedido em sua ascensão, manteve-se dividido entre dois mundos. Freud era atormentado por temores neuróticos de pobreza e surgiu para muitos judeus como o líder capaz de dirigi-los pelo labirinto da psique, fazendo de sua própria vida íntima o mais importante fator de orientação. E, assim, o pretenso complexo de Édipo universal, mito central de sua doutrina psíquica, espelha sua própria história familiar.
Paixão materna – Em 1897, ele escreveu: “Também em mim observei a paixão pela mãe e o ciúme pelo pai, considerando-os hoje um acontecimento generalizado da tenra infância”. O psicanalista procurou verdades universais até mesmo em seus próprios sonhos. Em Interpretação dos Sonhos, ele revelou o truque que lhe permitiu convencer os outros do acerto de suas conclusões subjetivas. No início de seu compêndio sobre os sonhos, Freud pede ao leitor: “Torne seus os meus interesses, procurando aprofundar-se nos menores detalhes de minha vida”. Somente os que fossem capazes de tornar suas as visões do autor aprenderiam a encontrar os chamados rastos “do significado secreto dos sonhos”.
“Um bom psicólogo é capaz de colocar-se em sua própria situação, sem o menor esforço”, ironizou-o o satirista Karl Kraus, que considerava o esforço de convencimento sugestivo de Freud um refinado engodo. Posando como cientista irredutível, o egocêntrico Freud conseguiu aumentar ainda mais sua fama junto ao leitor bem formado. O filósofo Ludwig Wittgenstein declarou seu espanto pelo fato do pai da psicanálise suspeitar da existência de motivos sexuais em quase todas as imagens de sonho, sem, no entanto, jamais descrever sonhos eróticos, “mesmo que estes sejam tão freqüentes como chuva”.
Clinicando até altas horas da noite num beco vienense, o neurologista proclamava que a psicanálise não era apenas uma terapia, mas uma necessidade, a ser praticada por todos. Para o historiador John Farrell, a sua incansável disposição para pressupor a existência de um significado mais profundo e secreto em todas as manifestações, de sonhos a equívocos cotidianos, revela traços patológicos. Farrell vê a desconfiança contra tudo e todos como uma marca da obra e da vida do psicanalista, atestando-lhe paranóia, com os sintomas característicos: megalomania, mania de perseguição, hostilidade, egocentrismo e a tendência a responsabilizar os outros pelos próprios erros e fraquezas.
Mas o desenvolvimento da sua “ciência” era implacável e a procura pelo auto-conhecimento tornou-se a palavra de ordem dos freudianos, um programa que resgatava a psicanálise do gueto da cura de doentes e a entronizava como um amplo e inesperado movimento de massas. Então, Freud considerou secundárias as qualidades terapêuticas.
Sessão cara – Certa vez, confiou ao discípulo e amigo Sándor Ferenczi a sua opinião sobre o poder terapêutico de seus métodos e o que achava de seus clientes neuróticos: “Os pacientes são um populacho, difícil de ser ajudado”. Freud cobrava US$ 10 ou 50 coroas austríacas por hora de sessão, pagos à vista em notas bancárias, na época, um honorário bastante elevado. Quando seu cliente americano Joseph Wortis tornou-se inadimplente, o mestre interrompeu o tratamento.
Na turbulenta década de 20, Freud tornou-se realmente célebre. A psicanálise passou a ter fama de movimento de libertação, superando os tabus sociais da época imperial, em especial as inibições sexuais de um mundo que naufragava. Em nome de um esclarecimento científico sério, o “grão-mestre da análise conseguiu falar sobre tudo o que, geralmente, nem era mencionado”, observa o filósofo Peter Sloterdijk, de Karlsruhe. Para ele, os efeitos dessa invasão foram revolucionários, mas também hilários.
Já Webster alega que, no fundo, é “profundamente tradicional” a posição da psicanálise ortodoxa diante da natureza instintiva do homem. Para o pesquisador, o que Freud pretendia nada tinha de violento: ele queria trazer à tona as manifestações instintivas, que se encontravam reprimidas e rumorejando perigosamente no inconsciente, a fim de discipliná-las, colocando-as sob o comando do ego consciente. Uma concepção que também pacificava os ânimos burgueses, o que em muito favoreceu a popularização da psicanálise.
Até sua morte, resultante de um câncer e ocorrida em setembro de 1939, Freud manteve uma férrea vigilância sobre o avanço bem-sucedido do movimento analítico. É longa a relação daqueles que, tendo sido seus discípulos ou correligionários, mais tarde se tornaram dissidentes, acabando por ser expulsos da comunidade psicanalítica, sob os insultos do mestre (“Stekel, aquele porco”, para lembrar apenas um deles). Encabeçada por aquele que deveria ter sido o príncipe herdeiro, Carl Gustav Jung, essa lista inclui Ferenczi, Wilhelm Reich, Wilhelm Stekel e Alfred Adler. O desprezo e o ódio de Freud perseguiu alguns deles mesmo depois de mortos.
Quando Adler morreu, em 1937, Freud, indignado, rejeitou pêsames do escritor Arnold Zweig, escrevendo-lhe: “Não consigo entender suas condolências por Adler. Para um rapazote judeu, nascido num subúrbio de Viena, a morte em Aberdeen, na Escócia, pode ser considerada uma carreira incrível, comprovando o quanto ele realizou”.
(Tradução de João Marschner)
Uma curiosa ‘ciência’ que nasceu polêmica
Para adversários, idéias freudianas eram um retrocesso nos padrões metodológicos do século 19

LUIZ ZANIN ORICCHIO
Há mais de um século, Sigmund Freud já usava a palavra psicanálise para designar um novo método de terapia das neuroses. Já publicara, junto com seu colega Joseph Breuer, os Estudos sobre a Histeria, um conjunto de estranhos casos clínicos que causou certa polêmica nos meios médicos de então. E estava preparando A Interpretação dos Sonhos, livro que seria colocado nas livrarias entre 1899 e 1900, na virada do século, e que, para os entendidos, significou o verdadeiro pulo do gato, o momento em que uma nova maneira de pensar o ser humano ganhou sua forma consolidada.
Curiosa ciência, se o termo cabe, pois mal surgia já era combatida pelo establishment teórico. De modo que a psicanálise, no entender de seus adversários, começou a morrer no exato momento em que nasceu. Ou melhor, seria uma natimorta típica, já que, para os padrões metodológicos do século 19, representava um franco retrocesso. De fato, Freud atribuía importância a tudo que parecia acessório no contexto da atividade mental: o sintoma físico das histéricas, uma incongruência incômoda no corpus médico oficial; os sonhos, o que o colocava em pé de igualdade com o charlatanismo do presente ou a feitiçaria do passado; os chistes e atos falhos, fenômenos tidos como desprezíveis ou simplesmente indignos da curiosidade científica.
De modo que a psicanálise nasceu marginal e assim seguiu, até constituir, ela própria, uma ortodoxia à parte, o que, possivelmente, não estava previsto em seu plano de vôo inicial. De fato, nada há de menos dogmático que a ensaística de Freud. Eclético, ele mobilizava em sua argumentação a sabedoria científica da época, mas, quando esta não bastava, procurava recursos na cultura ocidental, que dominava, e mesmo nas antigas crendices, naquelas que acreditavam serem os sonhos portadores de algum sentido oculto.
O fato de ser onívora, abriu para a psicanálise um leque de possibilidades muito mais amplo do que o da prática terapêutica. Tornou-se uma ferramenta de interpretação não apenas do indivíduo, mas de uma cultura doente. Funcionou como termômetro de determinado estágio da História – aquela época angustiada, de incertezas, de guerras, magnificamente analisada em O Mal-Estar na Civilização, ponto mais alto do ensaísmo freudiano, ao lado de O Futuro de uma Ilusão e Moisés e o Monoteísmo.
Em 1909, quando Sigmund Freud estava indo aos Estados Unidos, para apresentar aos norte-americanos suas descobertas, disse Jung, que o acompanhava: “Coitados, eles não sabem que estamos lhes levando a peste”. A frase, excelente, mostrou ser uma das mais falsas de todos os tempos. Nos Estados Unidos a psicanálise transformou-se rapidamente em tecnologia da busca da felicidade, em ferramenta de adaptação do indivíduo às expectativas da sociedade. Perdeu sua inspiração incial. Aquela mesma que fazia um nada modesto Freud comparar-se a Copérnico e Darwin, dois dos mais poderosos destruidores das ilusões do homem sobre si mesmo.
Na verdade, a psicanálise incorporou-se ao dia-a-dia de pessoas que nunca se deitaram em um divã ou leram uma única linha de Freud. Banalizou-se, em mais de um sentido. E perdeu seu tônus vital quando foi reduzida a um método de normalização do indivíduo. Mas é curioso como, neste fim de milênio, tão frágil do ponto de vista teórico e tão melancólico em seu comodismo, os grandes textos de Freud ainda pareçam inovadores, atuais, estimulantes.
Um retorno às idéias inciais de Freud foi tentado, nos anos 50 e 60, por Jacques Lacan. Talvez seja oportuno voltar, mais uma vez, a esse autor incômodo, que considera o homem um ser sem centro definido, sem eixo de referência palpável, um estranho em sua própria casa. Mas encontrará ele leitores interessados, neste tempo ávido de certezas, num pouco de segurança e alguma consolação de fundo religioso?
O apóstata transformado em um líder sacrossanto
Continuação do artigo revela os desdobramentos funestos da mistificação do neurologista vienense

Der Spiegel
Como se não bastassem os ataques enfurecidos de Freud a antigos companheiros de armas, ele saudou com entusiasmo patriótico a eclosão da violência em agosto de 1914 (“Minha libido pertence por completo ao império austro-húngaro”). Mais tarde, quando a mortandade da 1ª Guerra Mundial chegou ao fim, mais do que nunca ele se convenceu de que o homem passa pela vida e pela história movido basicamente por impulsos irracionais.
Nos anos 30, a elite dos psicanalistas europeus refugiou-se nas parte do mundo livres dos nazistas. Há 60 anos, em junho de 1938, após a anexação da Áustria pelos alemães, Freud também foi obrigado a deixar sua pátria. A bordo do Expresso Oriente, viajou para Paris, passando por Munique, seguindo até Londres, onde foi acolhido com reverência pelo governo britânico.
No bairro elegante de Hampstead, estabeleceu sua residência, numa villa luxuosa em Meresfield Gardens. Ao instalar-se, agradeceu Hitler por lhe ter propiciado um belo escritório, onde recebeu visitantes ilustres como Salvador Dalí, H. G. Wells e o líder sionista Chaim Weizmann. Mas a maioria dos discípulos de Freud emigrou para os Estados Unidos, país ridicularizado por ele, que, após visitá-lo, caracterizou-o como “um grande equívoco”.
Apóstolos – Os freudianos não tardaram a conquistar considerável influência nos EUA, graças também ao apoio de simpatizantes judeus. Conseguiram, então, concretizar aquilo que jamais lhes foi dado na velha Europa, ou seja, cargos importantes nas clínicas psiquiátricas. Freud, que jamais se convenceu plenamente dos efeitos terapêuticos de sua doutrina, sempre evitou tratar pacientes nervosos esquizofrênicos ou maníacos-depressivos. Seus apóstolos na América submeteram psicóticos a interrogatórios analíticos o que, de acordo com Shorter, muitas vezes prejudicou pacientes e a ciência psiquiátrica.
Os analistas, adversários ferrenhos da psiquiatria biológica, pouco valor atribuíam aos diagnósticos, organizados pela primeira vez pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1856-1926). Com sua nomenclatura erudita, como diziam os analistas, nada se faz pelos pacientes. Quando muito, são rotulados, para serem desclassificados como doentes mentais.
Já os freudianos afirmavam que, no fundo, e pelo menos em parte, todo mundo é um pouco louco. No caso dos doentes nervosos, esse estado só é mais intenso. A causa, porém, do mal sempre se encontra nos conflitos psíquicos da tenra infância, que devem ser superados durante o processo de análise, um projeto que se propunham a experimentar nas clínicas psiquiátricas.
A partir de então, faltou empenho no diagnóstico da psiquiatria dos EUA e as curas atingiram seus índices mais baixos. Herman van Praag, psiquiatra novaiorquino, observa que nas clínicas dirigidas por psicanalistas foi introduzida a distinção entre pacientes bons e maus. Os bons – ou seja, os que respondiam à terapia – , geralmente eram brancos, jovens, educados, da classe média, que, em resumo, seriam supostamente mais capazes de acompanhar mentalmente os complexos cursos de pensamento dos psicanalistas. Numa triagem analítica, eram separados negros, trabalhadores, velhos, alcóolatras e dementes, para quem conceitos como complexo de castração ou narcisismo seriam incompreensíveis como grego antigo.
Muitos desses “maus” pacientes foram parar nas seções de neurologia, tratados com choques elétricos ou operações no cérebro (lobotomias), até regressar ao seio familiar como aleijados mentais apáticos. As concepções de tratamento freudianas, talhadas para os mais abastados, sensíveis e educados, garantiu uma boa fonte de renda para os especialistas em doenças nervosas, até então mal remunerados, bem como círculos de clientes em eterna expansão.
A imagem positiva do analista como um bondoso doutor sapiente, logo foi reproduzida nas telas de cinema por cineastas como, por exemplo, Alfred Hitchcock. Em seu clássico Quando Fala o Coração (1944), que aborda um trauma de infância reprimido, o mestre do suspense tem como detetive um psicanalista de aparência freudiana, com cavanhaque e óculos de lentes redondas. O cineasta Woody Allen também foi analisado por longos anos. No divã do analista, esse talentoso feixe de nervos recebeu não apenas assistência espiritual, mas uma série de inspirações artísticas. Em seus filmes, são freqüentes as menções aos aspectos cômicos da auto-análise.
“Sem ascetismo não há cultura”, pregava o sábio vienense, cujo único vício era fumar charutos em série. Aos 27 anos, escreveu à sua noiva: “O populacho vive a vida, enquanto nós renunciamos. Reservamo-nos para alguma coisa que não sabemos o que seja. Esse hábito da constante repressão de instintos naturais leva-nos ao refinamento”. Durante sua vida, Freud defendeu um ideal de cultura aristocrático. Como pôde essa doutrina vingar justamente nos EUA, país em que a busca da felicidade individual é um preceito constitucional?
Corrupção – Isso se deu, assegura Erich Fromm, porque a psicanálise não tardou em ser fundamentalmente corrompida na América. Para Fromm, ela permitiu “racionalizações confortáveis” numa sociedade consumista, a partir de reflexões como: “Já que as neuroses se formam à medida que se inibem as necessidades, tolhendo sua concretização, há que se evitar a todo custo as frustrações”.
A psicanálise retornou à Europa após a guerra, estabelecendo-se rapidamente, sobretudo na ex-Alemanha Ocidental. Arrogando-se a tarefa de contribuir para a superação do passado nazista de alemães cheios de culpas, ela adquiriu um crédito moral que até hoje a sustenta.
Nazistas – Freud, que escapou dos nazistas na hora certa (quatro de suas irmãs foram assassinadas em campos de extermínio), era sacrossanto na década de 60, quando, com apoio oficial, Alexander Mitscherlich proclamou a fundação do Instituto Sigmund Freud, em Frankfurt. Esse centro de pesquisas, onde também se deveriam estudar os resultados psíquicos do terror nazista, reuniu, em determinado período, intelectuais críticos como Jürgen Habermas e Heinrich Boll.
Muitos desses simpatizantes freudianos aliaram-se à nova esquerda, que, por volta de 1968, se preparava para arejar o bolor deixado pela era Adenauer. Mas os estudantes revoltados de então simpatizavam com Wilhelm Reich, o teórico do orgasmo, expulso da comunidade psicanalítica por Freud, em 1934, como esquerdista transgressor das regras e que terminou sua carreira no deserto do Arizona, tentando fazer chover.
A redescoberta do quase esquecido e genial outsider anunciou o desenvolvimento de uma sociedade terapêutica pós-modernista: sua palavra de ordem libertária era “anything goes”, vale tudo. Cerca de 600 institutos estabeleceram-se desde então na Alemanha, num “psicomercado” caótico, em que a psicanálise clássica desempenha um papel secundário, por ser longa e custosa. Ainda assim, os críticos reconhecem que foi Freud quem abriu os portões do labirinto terapêutico, à medida que tratou de eliminar as fronteiras entre saúde e doença psíquica, convidando a transformação de todos em seres conscientes e vigorosos, por meio do autoconhecimento analítico.
Mas isso, avisa o psicoterapeuta Manfred Pohlen, de Marburg, só levou a uma “patologização” geral do normal e a uma tomada de poder totalitária dos psicoterapeutas. O psiquiatra Herbert Will confirma: “Hoje só podemos chamar de saudável, quem ainda não foi suficientemente examinado”.
Marx e psicanálise – Freud, que também gostaria de ser ministro, jamais se esqueceu da política. Para ele, o movimento psicanalítico representava um poder, que, acreditava, revolucionaria também a sociedade. Após a revolução russa de 1917, analistas socialistas tentaram conciliar as doutrinas de Marx e Freud. Em 1926, fundaram uma escola pré-primária psicanalítica em Moscou que, segundo consta, foi freqüentada também pelo filho de Stalin, Vassili.
Quatro anos depois, o ditador soviético proibiu seu funcionamento, quando a psicanálise passou a ser considerada uma falsa doutrina burguesa. Mas ela voltou à Rússia em 1996, assim que o presidente Boris Ieltsin assinou um decreto reconhecendo-a oficialmente como terapia. Um raio de luz para a comunidade psicanalítica ocidental, cujo desaparecimento vem sendo vaticinado por críticos como Pohlen e Webster.
Alguns especialistas crêem que o neurologista vienense só deu o título de ciência à psicanálise a fim de salvar as aparências e garantir respeito pela doutrina. Na verdade, ele teria apenas criado mitos modernos, com seus coloridos casos exemplares e teorias dramáticas sobre parricídio, incesto e inveja do pênis, de acordo com o modelo da Antigüidade, quando o mundo e os deuses eram explicados por lendas e contos de fadas.
“O mito – escreveu Wolfgang Marx – pôde, com a psicanálise, criar seu nicho ecológico no progressista e anti-mítico século 19, do qual até agora não foi expulso por qualquer ciência natural. E ele aí permanece, constantemente sitiado, sem, no entanto, estar esgotado”.
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Publicado em O Estado de São Paulo – 11/07/98


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