Crítica a Freud
A um ano de completarem-se os 60 anos de sua morte e celebrar-se
a publicação de A Interpretação dos Sonhos, o revolucionário da alma vai aos
poucos perdendo a auréola, que, por muito tempo, o defendeu dos ataques
constantes. Uma nova geração de críticos, mais radical do que as anteriores,
está derrubando o monumento a Freud e transformando em cinzas sua doutrina
psicanalítica. Mais grave: segundo seus adversários atuais, a implosão não
requer muitos explosivos, pois, há tempos, a outrora soberba fortaleza do rei
Édipo já se tornou ruína, não deixando nenhum aspecto da psicanálise a salvo de
críticas bem fundamentadas.
O psicólogo suíço Klaus Grawe considera “totalmente ultrapassado”
o modelo tripartido do “aparelho psíquico”, com sua divisão esquemática em id,
ego e superego. O mesmo valeria para a concepção psicanalítica dos “estágios
instintivos durante o desenvolvimento da criança: anal, oral e edipiano. Para
Grawe, esses são conceitos que não “frutificaram” na teoria e na prática
terapêutica.
Na doutrina freudiana dos desejos e instintos reprimidos, que
dirigem o comportamento humano como “regentes secretos” da obscuridade do
inconsciente, o Deutsche Universitätszeitung ressalta “ecos de uma época
contrária ao prazer”. Para muitos, Freud aparece tão nu quanto o personagem da
lenda dos roupas novas do imperador. O historiador britânico Richard Webster
diz que ele não passou do “criador de uma complexa pseudociência, que deveria
ser considerada uma das grandes loucuras do civilização ocidental”.
Conto-do-vigário – Ao contrário, porém, do que acontece na
lenda, em que a observação da criança abriu os olhos do povo deslumbrado, os
vereditos dos críticos de Freud, até agora, permaneceram sem efeito. Há vinte
anos, o médico ganhador do Prêmio Nobel, Peter Medawar, declarou que a
psicanálise era “o mais terrível conto-do-vigário do século”, prevendo seu
breve desaparecimento. Os mitos freudianos, no entanto, cravaram-se profundamente
no consciente coletivo.
Nas brigas familiares, na TV, nas conversas de mesa de bar
surgem como que espontâneos os conceitos básicos que interpretam ou condenam
socialmente o comportamento de nossos semelhantes. Manfred Pohlen e Margarethe
Bautz-Holzherr, psicoterapeutas de Marburgo, queixam-se da “máquina de
interpretação” criada por Freud. Não há um só recanto da cultura ou da
sociedade que escape “à mania do esclarecimento” da psicanálise. Até mesmo os
já mortos, de Goethe a Karl Marx, de Nietzsche a Schopenhauer, de Stalin a
Hitler, todos podem ser traduzidos de acordo com as regras da interpretação
psicanalítica, das quais não escapam nem sequer heróis míticos da Antigüidade
ou religiões de culturas estrangeiras. Segundo Pohlen e Bautz-Holzherr, a psicanálise
tornou-se um “poder colonialista” espiritual, subjugando todo o mundo.
Tal como outros iconoclastas, Freud passou de rebelde a criador
de uma “nova ortodoxia”, uma doutrina de salvação terrena, que ostenta claros
aspectos das “tradições judaico-cristãs”. No recém-publicado Why Freud Was
Wrong, Richard Webster tenta explicar como o neurologista vienense –
racionalista e agnóstico convicto – tornou-se o fundador de uma religião e guru
de um movimento espiritual universal. Sua resposta: ambição desmedida e
messianismo foram as forças-motrizes daquele que, no fim da vida, gostava de
comparar-se a Moisés.
Cedo amadureceu em seu espírito o sentimento de ter uma missão
superior. Jacob, pai de Freud, um mercador de tecidos viajante, mudou-se com
mulher e filhos para Viena, em 1860, como tantos outros milhares de migrantes
judeus do leste do império austro-húngaro. Todas as esperanças da família, que
com dificuldades se adaptou ao novo ambiente, concentraram-se sobre o filho
Sigmund, nascido em 1856. O menino, o mais velho de oito irmãos, não os
decepcionou. Formou-se nos estudos secundários aos 17 anos e com 24 anos
tornou-se doutor em medicina. Aos 29 anos, já era livre-docente da
universidade.
Favoritos – A mãe endeusava-o (“Sigi, meu menino dourado”, costumava
dizer), o que ele interpretava como sinal de ser um escolhido, algo de que se
recordaria por toda a vida. Em 1917, anotou que os que foram os favoritos de
suas mães jamais perderiam “aquele sentimento de conquistadores”, garantia de
sucesso. Esse entranhado desejo de vencer orientou Freud e levou-o a
descaminhos. À procura de temas de pesquisa originais, o jovem médico fez
experiências com cocaína. A sugestão viera de um médico militar prussiano que
galvanizara seus recrutas estafados com a droga.
Depois de ter experimentado cocaína, Freud teceu-lhe loas num
artigo, chamando-a de verdadeira panacéia. Elizabeth Thornton, pesquisadora
americana da obra do pai da psicanálise, acredita que ele foi cocainômano por
um longo tempo. Os indícios estão nas cartas algo desvairadas que enviou à sua
então noiva e futura mulher, Martha Bernays. Pouco depois, participou, com
igual entusiasmo, das pesquisas de um amigo médico chamado Wilhelm Fliess, para
quem havia um relação estreita entre os órgãos olfativos e os sexuais. Partindo
dessa premissa exótica , Fliess, um otorrinolaringologista , tratava distúrbios
sexuais com operações nasais. Freud ficou tão impressionado com as dúbias
experiências do colega que se deixou operar por ele várias vezes, no afã de
livrar-se de patologias neuro-sexuais. Só se distanciou dessa sangrenta terapia
sexual depois de ter quase perdido (matado?) uma paciente, vítima de uma
intervenção nasal malograda.
Histerias – Freud seguiu à caça de descobertas sensacionais.
Outro colega, o clínico geral Josef Breuer, despertou seu interesse pela
histeria, doença da moda no fin de siècle, que podia provocar paralisias ou
alucinações ( hoje, por motivos ignorados, esse mal não existe mais). Breuer
queria curar mulheres histéricas por meio de hipnotismo e Freud entusiasmou-se
com a idéia, não tardando a aplicá-la em seu consultório. Com a tenacidade de
um inspetor de polícia, investigou em suas histéricas motivos sexuais secretos,
que ele considerava como causas da moléstia.
Em maio de 1895, junto com Breuer, Freud publicou os Estudos
sobre Histeria. Para Webster, os relatórios terapêuticos do chamado “livro
fundamental da psicanálise” são contos de fadas. O pesquisador comprovou que
nenhuma das cinco pacientes mencionadas foi definitivamente curada. Em sua
opinião, a maioria nem sequer sofria de histeria. Nem mesmo “Emmy von N.”, que
Freud apresentou como seu exemplo mais significativo.
Gagueira – “Emmy von N.”, em verdade Fanny Moser, procurou o
médico com toda a sorte de dores. Era viúva de um industrial e uma das mulheres
mais ricas da Europa. Sua fala era entrecortada por estalos de língua
involuntários e, quando excitada, seu discurso era interrompido por gagueira e
um tique nervoso que retorcia suas feições. Freud metralhou a paciente com
perguntas sobre a infância, de cunho sexual, para, depois, declará-la curada.
No entanto, segundo Webster, ele poderia ter reconhecido que a sra. Moser
sofria da síndrome de Tourette, um complexo de sintomas que aparece depois de
uma meningite. O mal, já bem conhecido, revela-se pelos indícios da doença de
Fanny.
Os motivos que levaram Freud a desconsiderar esse diagnóstico
óbvio, a despeito de conhecer pessoalmente o descobridor da doença, o francês
Gilles de la Tourette, levam o pesquisador britânico a afirmar que os
fundadores da psicanálise operavam no limite da charlatanice. Os magros
resultados da terapia de Freud não prejudicaram sua fama de psicanalista. Em
1900, ele era considerado o último recurso para doentes nervosos desenganados
pela medicina tradicional.
No início, Freud conquistou sobretudo as mulheres das famílias
judias vindas do Leste, que sofriam a perturbadora coerção de terem que se
adaptar rapidamente aos padrões culturais da Europa Ocidental, um problema de
assimilação que ele conhecia por experiência própria. Quando, todos os
domingos, visitava sua mãe, Freud era acometido por cólicas estomacais. Seu
pai, Jacob, sempre se esforçou para integrar-se à sociedade, mas nunca
conseguiu sucesso como comerciante, em Viena.
Assim, o filho, Sigmund, bem-sucedido em sua ascensão,
manteve-se dividido entre dois mundos. Freud era atormentado por temores
neuróticos de pobreza e surgiu para muitos judeus como o líder capaz de
dirigi-los pelo labirinto da psique, fazendo de sua própria vida íntima o mais
importante fator de orientação. E, assim, o pretenso complexo de Édipo
universal, mito central de sua doutrina psíquica, espelha sua própria história
familiar.
Paixão materna – Em 1897, ele escreveu: “Também em mim observei
a paixão pela mãe e o ciúme pelo pai, considerando-os hoje um acontecimento
generalizado da tenra infância”. O psicanalista procurou verdades universais
até mesmo em seus próprios sonhos. Em Interpretação dos Sonhos, ele revelou o
truque que lhe permitiu convencer os outros do acerto de suas conclusões
subjetivas. No início de seu compêndio sobre os sonhos, Freud pede ao leitor:
“Torne seus os meus interesses, procurando aprofundar-se nos menores detalhes
de minha vida”. Somente os que fossem capazes de tornar suas as visões do autor
aprenderiam a encontrar os chamados rastos “do significado secreto dos sonhos”.
“Um bom psicólogo é capaz de colocar-se em sua própria situação,
sem o menor esforço”, ironizou-o o satirista Karl Kraus, que considerava o
esforço de convencimento sugestivo de Freud um refinado engodo. Posando como
cientista irredutível, o egocêntrico Freud conseguiu aumentar ainda mais sua
fama junto ao leitor bem formado. O filósofo Ludwig Wittgenstein declarou seu
espanto pelo fato do pai da psicanálise suspeitar da existência de motivos
sexuais em quase todas as imagens de sonho, sem, no entanto, jamais descrever
sonhos eróticos, “mesmo que estes sejam tão freqüentes como chuva”.
Clinicando até altas horas da noite num beco vienense, o
neurologista proclamava que a psicanálise não era apenas uma terapia, mas uma
necessidade, a ser praticada por todos. Para o historiador John Farrell, a sua
incansável disposição para pressupor a existência de um significado mais
profundo e secreto em todas as manifestações, de sonhos a equívocos cotidianos,
revela traços patológicos. Farrell vê a desconfiança contra tudo e todos como
uma marca da obra e da vida do psicanalista, atestando-lhe paranóia, com os
sintomas característicos: megalomania, mania de perseguição, hostilidade,
egocentrismo e a tendência a responsabilizar os outros pelos próprios erros e
fraquezas.
Mas o desenvolvimento da sua “ciência” era implacável e a
procura pelo auto-conhecimento tornou-se a palavra de ordem dos freudianos, um
programa que resgatava a psicanálise do gueto da cura de doentes e a
entronizava como um amplo e inesperado movimento de massas. Então, Freud
considerou secundárias as qualidades terapêuticas.
Sessão cara – Certa vez, confiou ao discípulo e amigo Sándor
Ferenczi a sua opinião sobre o poder terapêutico de seus métodos e o que achava
de seus clientes neuróticos: “Os pacientes são um populacho, difícil de ser
ajudado”. Freud cobrava US$ 10 ou 50 coroas austríacas por hora de sessão,
pagos à vista em notas bancárias, na época, um honorário bastante elevado. Quando
seu cliente americano Joseph Wortis tornou-se inadimplente, o mestre
interrompeu o tratamento.
Na turbulenta década de 20, Freud tornou-se realmente célebre. A
psicanálise passou a ter fama de movimento de libertação, superando os tabus
sociais da época imperial, em especial as inibições sexuais de um mundo que
naufragava. Em nome de um esclarecimento científico sério, o “grão-mestre da
análise conseguiu falar sobre tudo o que, geralmente, nem era mencionado”,
observa o filósofo Peter Sloterdijk, de Karlsruhe. Para ele, os efeitos dessa
invasão foram revolucionários, mas também hilários.
Já Webster alega que, no fundo, é “profundamente tradicional” a
posição da psicanálise ortodoxa diante da natureza instintiva do homem. Para o
pesquisador, o que Freud pretendia nada tinha de violento: ele queria trazer à
tona as manifestações instintivas, que se encontravam reprimidas e rumorejando
perigosamente no inconsciente, a fim de discipliná-las, colocando-as sob o
comando do ego consciente. Uma concepção que também pacificava os ânimos
burgueses, o que em muito favoreceu a popularização da psicanálise.
Até sua morte, resultante de um câncer e ocorrida em setembro de
1939, Freud manteve uma férrea vigilância sobre o avanço bem-sucedido do
movimento analítico. É longa a relação daqueles que, tendo sido seus discípulos
ou correligionários, mais tarde se tornaram dissidentes, acabando por ser
expulsos da comunidade psicanalítica, sob os insultos do mestre (“Stekel,
aquele porco”, para lembrar apenas um deles). Encabeçada por aquele que deveria
ter sido o príncipe herdeiro, Carl Gustav Jung, essa lista inclui Ferenczi,
Wilhelm Reich, Wilhelm Stekel e Alfred Adler. O desprezo e o ódio de Freud
perseguiu alguns deles mesmo depois de mortos.
Quando Adler morreu, em 1937, Freud, indignado, rejeitou pêsames
do escritor Arnold Zweig, escrevendo-lhe: “Não consigo entender suas
condolências por Adler. Para um rapazote judeu, nascido num subúrbio de Viena,
a morte em Aberdeen, na Escócia, pode ser considerada uma carreira incrível, comprovando
o quanto ele realizou”.
(Tradução de João Marschner)
Uma curiosa ‘ciência’ que nasceu polêmica
Para adversários, idéias freudianas eram um retrocesso nos padrões
metodológicos do século 19
LUIZ ZANIN ORICCHIO
Há mais de um século, Sigmund Freud já usava a palavra
psicanálise para designar um novo método de terapia das neuroses. Já publicara,
junto com seu colega Joseph Breuer, os Estudos sobre a Histeria, um conjunto de
estranhos casos clínicos que causou certa polêmica nos meios médicos de então.
E estava preparando A Interpretação dos Sonhos, livro que seria colocado nas
livrarias entre 1899 e 1900, na virada do século, e que, para os entendidos,
significou o verdadeiro pulo do gato, o momento em que uma nova maneira de
pensar o ser humano ganhou sua forma consolidada.
Curiosa ciência, se o termo cabe, pois mal surgia já era
combatida pelo establishment teórico. De modo que a psicanálise, no entender de
seus adversários, começou a morrer no exato momento em que nasceu. Ou melhor,
seria uma natimorta típica, já que, para os padrões metodológicos do século 19,
representava um franco retrocesso. De fato, Freud atribuía importância a tudo
que parecia acessório no contexto da atividade mental: o sintoma físico das
histéricas, uma incongruência incômoda no corpus médico oficial; os sonhos, o
que o colocava em pé de igualdade com o charlatanismo do presente ou a
feitiçaria do passado; os chistes e atos falhos, fenômenos tidos como
desprezíveis ou simplesmente indignos da curiosidade científica.
De modo que a psicanálise nasceu marginal e assim seguiu, até
constituir, ela própria, uma ortodoxia à parte, o que, possivelmente, não
estava previsto em seu plano de vôo inicial. De fato, nada há de menos
dogmático que a ensaística de Freud. Eclético, ele mobilizava em sua
argumentação a sabedoria científica da época, mas, quando esta não bastava,
procurava recursos na cultura ocidental, que dominava, e mesmo nas antigas
crendices, naquelas que acreditavam serem os sonhos portadores de algum sentido
oculto.
O fato de ser onívora, abriu para a psicanálise um leque de
possibilidades muito mais amplo do que o da prática terapêutica. Tornou-se uma
ferramenta de interpretação não apenas do indivíduo, mas de uma cultura doente.
Funcionou como termômetro de determinado estágio da História – aquela época
angustiada, de incertezas, de guerras, magnificamente analisada em O Mal-Estar
na Civilização, ponto mais alto do ensaísmo freudiano, ao lado de O Futuro de
uma Ilusão e Moisés e o Monoteísmo.
Em 1909, quando Sigmund Freud estava indo aos Estados Unidos,
para apresentar aos norte-americanos suas descobertas, disse Jung, que o
acompanhava: “Coitados, eles não sabem que estamos lhes levando a peste”. A
frase, excelente, mostrou ser uma das mais falsas de todos os tempos. Nos Estados
Unidos a psicanálise transformou-se rapidamente em tecnologia da busca da
felicidade, em ferramenta de adaptação do indivíduo às expectativas da
sociedade. Perdeu sua inspiração incial. Aquela mesma que fazia um nada modesto
Freud comparar-se a Copérnico e Darwin, dois dos mais poderosos destruidores
das ilusões do homem sobre si mesmo.
Na verdade, a psicanálise incorporou-se ao dia-a-dia de pessoas
que nunca se deitaram em um divã ou leram uma única linha de Freud.
Banalizou-se, em mais de um sentido. E perdeu seu tônus vital quando foi
reduzida a um método de normalização do indivíduo. Mas é curioso como, neste
fim de milênio, tão frágil do ponto de vista teórico e tão melancólico em seu
comodismo, os grandes textos de Freud ainda pareçam inovadores, atuais,
estimulantes.
Um retorno às idéias inciais de Freud foi tentado, nos anos 50 e
60, por Jacques Lacan. Talvez seja oportuno voltar, mais uma vez, a esse autor
incômodo, que considera o homem um ser sem centro definido, sem eixo de
referência palpável, um estranho em sua própria casa. Mas encontrará ele
leitores interessados, neste tempo ávido de certezas, num pouco de segurança e
alguma consolação de fundo religioso?
O apóstata transformado em um líder sacrossanto
Continuação do artigo revela os desdobramentos funestos da mistificação do
neurologista vienense
Der Spiegel
Como se não bastassem os ataques enfurecidos de Freud a antigos
companheiros de armas, ele saudou com entusiasmo patriótico a eclosão da
violência em agosto de 1914 (“Minha libido pertence por completo ao império
austro-húngaro”). Mais tarde, quando a mortandade da 1ª Guerra Mundial chegou
ao fim, mais do que nunca ele se convenceu de que o homem passa pela vida e
pela história movido basicamente por impulsos irracionais.
Nos anos 30, a elite dos psicanalistas europeus refugiou-se nas
parte do mundo livres dos nazistas. Há 60 anos, em junho de 1938, após a
anexação da Áustria pelos alemães, Freud também foi obrigado a deixar sua
pátria. A bordo do Expresso Oriente, viajou para Paris, passando por Munique,
seguindo até Londres, onde foi acolhido com reverência pelo governo britânico.
No bairro elegante de Hampstead, estabeleceu sua residência,
numa villa luxuosa em Meresfield Gardens. Ao instalar-se, agradeceu Hitler por
lhe ter propiciado um belo escritório, onde recebeu visitantes ilustres como
Salvador Dalí, H. G. Wells e o líder sionista Chaim Weizmann. Mas a maioria dos
discípulos de Freud emigrou para os Estados Unidos, país ridicularizado por
ele, que, após visitá-lo, caracterizou-o como “um grande equívoco”.
Apóstolos – Os freudianos não tardaram a conquistar considerável
influência nos EUA, graças também ao apoio de simpatizantes judeus.
Conseguiram, então, concretizar aquilo que jamais lhes foi dado na velha
Europa, ou seja, cargos importantes nas clínicas psiquiátricas. Freud, que
jamais se convenceu plenamente dos efeitos terapêuticos de sua doutrina, sempre
evitou tratar pacientes nervosos esquizofrênicos ou maníacos-depressivos. Seus
apóstolos na América submeteram psicóticos a interrogatórios analíticos o que,
de acordo com Shorter, muitas vezes prejudicou pacientes e a ciência
psiquiátrica.
Os analistas, adversários ferrenhos da psiquiatria biológica,
pouco valor atribuíam aos diagnósticos, organizados pela primeira vez pelo
psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1856-1926). Com sua nomenclatura erudita,
como diziam os analistas, nada se faz pelos pacientes. Quando muito, são
rotulados, para serem desclassificados como doentes mentais.
Já os freudianos afirmavam que, no fundo, e pelo menos em parte,
todo mundo é um pouco louco. No caso dos doentes nervosos, esse estado só é
mais intenso. A causa, porém, do mal sempre se encontra nos conflitos psíquicos
da tenra infância, que devem ser superados durante o processo de análise, um projeto
que se propunham a experimentar nas clínicas psiquiátricas.
A partir de então, faltou empenho no diagnóstico da psiquiatria
dos EUA e as curas atingiram seus índices mais baixos. Herman van Praag,
psiquiatra novaiorquino, observa que nas clínicas dirigidas por psicanalistas
foi introduzida a distinção entre pacientes bons e maus. Os bons – ou seja, os
que respondiam à terapia – , geralmente eram brancos, jovens, educados, da
classe média, que, em resumo, seriam supostamente mais capazes de acompanhar mentalmente
os complexos cursos de pensamento dos psicanalistas. Numa triagem analítica,
eram separados negros, trabalhadores, velhos, alcóolatras e dementes, para quem
conceitos como complexo de castração ou narcisismo seriam incompreensíveis como
grego antigo.
Muitos desses “maus” pacientes foram parar nas seções de
neurologia, tratados com choques elétricos ou operações no cérebro
(lobotomias), até regressar ao seio familiar como aleijados mentais apáticos.
As concepções de tratamento freudianas, talhadas para os mais abastados,
sensíveis e educados, garantiu uma boa fonte de renda para os especialistas em
doenças nervosas, até então mal remunerados, bem como círculos de clientes em
eterna expansão.
A imagem positiva do analista como um bondoso doutor sapiente,
logo foi reproduzida nas telas de cinema por cineastas como, por exemplo,
Alfred Hitchcock. Em seu clássico Quando Fala o Coração (1944), que aborda um
trauma de infância reprimido, o mestre do suspense tem como detetive um
psicanalista de aparência freudiana, com cavanhaque e óculos de lentes
redondas. O cineasta Woody Allen também foi analisado por longos anos. No divã
do analista, esse talentoso feixe de nervos recebeu não apenas assistência
espiritual, mas uma série de inspirações artísticas. Em seus filmes, são
freqüentes as menções aos aspectos cômicos da auto-análise.
“Sem ascetismo não há cultura”, pregava o sábio vienense, cujo
único vício era fumar charutos em série. Aos 27 anos, escreveu à sua noiva: “O
populacho vive a vida, enquanto nós renunciamos. Reservamo-nos para alguma
coisa que não sabemos o que seja. Esse hábito da constante repressão de
instintos naturais leva-nos ao refinamento”. Durante sua vida, Freud defendeu
um ideal de cultura aristocrático. Como pôde essa doutrina vingar justamente
nos EUA, país em que a busca da felicidade individual é um preceito
constitucional?
Corrupção – Isso se deu, assegura Erich Fromm, porque a
psicanálise não tardou em ser fundamentalmente corrompida na América. Para
Fromm, ela permitiu “racionalizações confortáveis” numa sociedade consumista, a
partir de reflexões como: “Já que as neuroses se formam à medida que se inibem
as necessidades, tolhendo sua concretização, há que se evitar a todo custo as
frustrações”.
A psicanálise retornou à Europa após a guerra, estabelecendo-se
rapidamente, sobretudo na ex-Alemanha Ocidental. Arrogando-se a tarefa de
contribuir para a superação do passado nazista de alemães cheios de culpas, ela
adquiriu um crédito moral que até hoje a sustenta.
Nazistas – Freud, que escapou dos nazistas na hora certa (quatro
de suas irmãs foram assassinadas em campos de extermínio), era sacrossanto na
década de 60, quando, com apoio oficial, Alexander Mitscherlich proclamou a
fundação do Instituto Sigmund Freud, em Frankfurt. Esse centro de pesquisas,
onde também se deveriam estudar os resultados psíquicos do terror nazista,
reuniu, em determinado período, intelectuais críticos como Jürgen Habermas e
Heinrich Boll.
Muitos desses simpatizantes freudianos aliaram-se à nova
esquerda, que, por volta de 1968, se preparava para arejar o bolor deixado pela
era Adenauer. Mas os estudantes revoltados de então simpatizavam com Wilhelm
Reich, o teórico do orgasmo, expulso da comunidade psicanalítica por Freud, em
1934, como esquerdista transgressor das regras e que terminou sua carreira no
deserto do Arizona, tentando fazer chover.
A redescoberta do quase esquecido e genial outsider anunciou o
desenvolvimento de uma sociedade terapêutica pós-modernista: sua palavra de
ordem libertária era “anything goes”, vale tudo. Cerca de 600 institutos
estabeleceram-se desde então na Alemanha, num “psicomercado” caótico, em que a
psicanálise clássica desempenha um papel secundário, por ser longa e custosa.
Ainda assim, os críticos reconhecem que foi Freud quem abriu os portões do
labirinto terapêutico, à medida que tratou de eliminar as fronteiras entre
saúde e doença psíquica, convidando a transformação de todos em seres
conscientes e vigorosos, por meio do autoconhecimento analítico.
Mas isso, avisa o psicoterapeuta Manfred Pohlen, de Marburg, só
levou a uma “patologização” geral do normal e a uma tomada de poder totalitária
dos psicoterapeutas. O psiquiatra Herbert Will confirma: “Hoje só podemos
chamar de saudável, quem ainda não foi suficientemente examinado”.
Marx e psicanálise – Freud, que também gostaria de ser ministro,
jamais se esqueceu da política. Para ele, o movimento psicanalítico
representava um poder, que, acreditava, revolucionaria também a sociedade. Após
a revolução russa de 1917, analistas socialistas tentaram conciliar as
doutrinas de Marx e Freud. Em 1926, fundaram uma escola pré-primária
psicanalítica em Moscou que, segundo consta, foi freqüentada também pelo filho
de Stalin, Vassili.
Quatro anos depois, o ditador soviético proibiu seu
funcionamento, quando a psicanálise passou a ser considerada uma falsa doutrina
burguesa. Mas ela voltou à Rússia em 1996, assim que o presidente Boris Ieltsin
assinou um decreto reconhecendo-a oficialmente como terapia. Um raio de luz para
a comunidade psicanalítica ocidental, cujo desaparecimento vem sendo vaticinado
por críticos como Pohlen e Webster.
Alguns especialistas crêem que o neurologista vienense só deu o
título de ciência à psicanálise a fim de salvar as aparências e garantir respeito
pela doutrina. Na verdade, ele teria apenas criado mitos modernos, com seus
coloridos casos exemplares e teorias dramáticas sobre parricídio, incesto e
inveja do pênis, de acordo com o modelo da Antigüidade, quando o mundo e os
deuses eram explicados por lendas e contos de fadas.
“O mito – escreveu Wolfgang Marx – pôde, com a psicanálise,
criar seu nicho ecológico no progressista e anti-mítico século 19, do qual até
agora não foi expulso por qualquer ciência natural. E ele aí permanece,
constantemente sitiado, sem, no entanto, estar esgotado”.
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Publicado em O Estado de São Paulo – 11/07/98
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